Verdade em Essência e Subversivo em Acidente

Notas de “cristianismo público”

Natanael Pedro Castoldi
6 min readJan 30, 2024

Se o cristianismo é subversivo, o é por acidente, não em essência, se entendermos subversão em seu sentido usual, que é político e cultural. Em substância, o cristianismo, radicado na Transcendência, é suprapolítico e supracultural — que é exatamente o que se quer dizer quando se diz que em Cristo não há judeu ou grego. Se subverter fosse por essência, ele seria subversão por subversão, ou revolta por revolta, o que nos colocaria numa condição complicada, porque a rebelião constante é uma característica do Caos e tem a marca do Não-Ser, que é a marca do Pecado. Se o cristianismo é subversivo, o é por acidente, não por essência, porque essa subversão em superfície decorre não exata e simplesmente de uma negação dialética, mas da afirmação de realidades substanciais, que são infraestruturais da Criação — se se tratasse de mero ímpeto praxialógico de transformação cultural, não seria mais do que os marxistas dizem ao seu respeito.

É da afirmação obstinada e resoluta do Mistério de Deus, que é a Graça em Cristo ocultada na Lei e o Corpo que projetou sombras sobre os gentios, ao qual buscaram como que tateando no escuro, que as aparências do Mundo, a semeadura na Carne, necessariamente se dissolvem, postas em suspenso. E isso é não em função de um expediente militante, em termos de persuasão retórica e adaptação cultural, para a ~redenção social~, mas principalmente pela afirmação da Verdade, que é ontológica, que é o Absoluto, que é o Espírito e Poder (1 Coríntios 4:20), que é a Palavra em Escritura e no Logos Divino, o fundamento mesmo da Criação, Aquele que nela insuflou, quando da moldura do Tohu e Bohu, Causa Formal e Causa Final, que não são, n’última instância, energia e entropia, mas Símbolo e Apocatástase, Novo Céu e Nova Terra aos pés do Trono de Deus. Por essa razão, o cristianismo, conquanto tensione escatologicamente com “O Século” e as aparências da Carne, combatendo espiritualmente contra os príncipes dos demônios, e que, portanto, oponhe-se logicamente ao que está sob o véu da Velha Criação, afirma e sustenta tudo quanto corresponda, ainda que como sombra, aos “bens futuros”, que esteja prenhe de Verdade e que represente tanto uma reminiscência edênica, quanto uma antecipação paradisíaca — a saber:

… tudo o que for verdadeiro, tudo o que for nobre, tudo o que for correto, tudo o que for puro, tudo o que for amável, tudo o que for de boa fama, se houver algo de excelente ou digno de louvor, nisso pensai. — Fl 4:8

Nessa listagem, naturalmente o apóstolo Paulo faz referência a qualidades que estão presentes em obras internas e externas à Igreja, o que não significa que os seus obreiros, em termos soteriológicos, tenham quaisquer méritos em função delas, porque há atos universalmente reconhecíveis como aceitáveis, tais como não dar escorpiões, mas pães, aos filhos. Acrescento aqui o escândalo dos pagãos mediante o inc3st0 na congregação de Corinto — esse é um “escândalo” justo, porque afirma um consenso sobre o que seria, então, correto. Há Bom e há Belo, o ‘kalos’ de Gálatas 6:9, porque é Bom e Belo aquilo que é apropriado e justo, que corresponde à Verdade a respeito da coisa e de seu propósito. E se Paulo citou Epimênides em Tito 1:12 e Atos 17:28, e o poeta Arato em Atos 17, tendo já apresentado certas doutrinas platônicas e estoicas em seu próprio argumento, afirma que há Verdade, nalguma medida, nesses pensadores gentios, e que esses pensadores, no ato mesmo de seu pensamento a respeito dessas coisas, pensaram um pensamento Justo, que é Bom e Belo, ou apropriado à sua condição prévia à revelação do Eschatos, donde seu valor inerente, ainda que parcial, a ser legitimamente absorvido, redefinido e refinado em Cristo — a Verdade Toda que neles, naquilo que tinham de verdadeiro, jazia como reflexo ou eco.

… o apóstolo Pedro prevê paz e tranquilidade às igrejas, que podem confiar nas virtudes jacentes no Palácio, e a graça de todo o povo…

Similarmente, podem os cristãos orar pelos seus governantes, porque há um filão de legitimidade e de justiça, ou de Verdade, no governo reto, ainda que necessariamente falho. Os príncipes entre os homens podem ser virtuosos, falando-se daquela virtude apropriada e possível à condição de ignorância do Eschatos, e podem ser bons gestores e líderes, fomentadores de um estado de coisas funcional e justo nos aparatos institucionais, para que aquele que ostenta o cetro também possa ministrar a espada da restituição, pesando-a sobre os transgressores e afastando-a dos benfeitores. Assim, através da oração e da boa conduta pública, quando não se exige publicamente aquilo que for contrário à Fé, o apóstolo Pedro prevê paz e tranquilidade às igrejas, que podem confiar nas virtudes jacentes no Palácio, e a graça de todo o povo. Dizemos tais coisas em vista de situações ótimas, que se escasseiam progressivamente no contexto do drama escatológico e da generalização do Mal, o qual redundará necessariamente em perseguição. Vede, porém, que não é a Igreja que se impõe subversivamente contra o Mundo, em termos de ser movida por ímpeto escandaloso e por uma agressividade contra homens — ela estará simplesmente continuando a irradiar a Luz, como sempre o fez, e as Trevas é que se desinficarão e armarão hostes para cerceá-la e destruí-la, ao que a Igreja reagirá com obstinação e intensificação no mesmo.

Consolide-se o argumentado: a subversão é acidente, não substância, porque a Igreja, ainda que combata em si mesma todas as dificuldades da condição humana, está ao lado da Realidade, ou da estrutura íntima e eterna da Criação — subversivos são os diabos e os servos de Satanás, revoltosos prometeicos e luciferianos, sempre ao redor de titanismos astuciosos, movidos por interesses de poder secular e de riqueza material, semeando, atormentados, nas aparências e contra a própria Criação, que agoniza e que vai se deteriorando e deformando. Ao estar imiscuída do Eschatos, que é a Verdade do Mundo, a Igreja afirmará valores e virtudes atemporais que, com a Graça de Deus, foram conservadas em gérmen nos corações dos melhores dos homens e que ainda podem existir na vida pública, porque ela mesma viverá esses valores e essas virtudes, é claro que num radicalismo radicado no éthos do Reino que “vem vindo”, e saberá sustentá-los na moral pública. Todavia, não militará por eles em termos de causa política e ideológica — os viverá, é evidente, e continuamente os colocará sob o Cabeça, que é Cristo, onde eles recuperam seu nexo com as Causas Formal e Final, porque é n’Ele que eles deixam de existir na dimensão horizontal, que semeia na Carne, e passam a existir no Espírito, que mira a Eternidade.

Também não pense que o cristianismo veio inseminar uma “guerra dos sexos” no mundo gentio…

Por essas razões, acho altamente perigosa e desnecessária a atribuição de funções subversivas, em sentido material, político e ideológico, à Igreja de Cristo. Você não deve achar que os valores radicalizados defendidos pelos cristãos primitivos eram vistos como malignos pelos gentios — pelo contrário, se os escandalizavam, era em função da loucura que seria viver uma ética tão severa, que os ofendia por constrangimento de consciência. Você não deve achar que as doutrinas cristãs são absurdos lógicos, que escandalizaram aos gregos por conta de sua irracionalidade subvertora — uma vez atingido o limite da razão natural e inseminada pelo Espírito Santo no coração do crente a Revelação e o cerne da Verdade, inalcançável pelas Primeira e Segunda Navegações, verificou-se que essas doutrinas são consistentíssimas e avalizadas pelos princípios elementares da Lógica. Não fosse assim, não seriam os próprios gregos conversos os primeiros grandes teólogos pós-apostólicos. Também não pense que o cristianismo veio inseminar uma “guerra dos sexos” no mundo gentio, que era o objeto (o mundo gentio) de livros como os dos evangelistas Lucas e João. A ideia de mulheres serem apresentadas não em papel de liderança do movimento, mas como protagonistas de algumas das experiências espirituais e de cumprimento profético mais marcantes, como o encontro de Maria Madalena com o Cristo Ressurreto no Getsêmani, descrita por João como a primeira a vê-Lo redivivo, não soaria estranha aos pagãos, como de fato não soou (quão rapidamente os greco-romanos conversos se voltaram à Mãe de Deus!). É natural que pensemos assim, pois as mulheres eram sacerdotisas e videntes de alguns dos principais santuários da Antiguidade, inclusive do mais famoso de todos, Delfos, com a sua Pitonisa, e o maior deles, o de Diana, em Éfeso — a proeminência cúltica das mulheres entre os gentios foi o que deu dor de cabeça para Paulo em Corinto. Isso sem falar das religiões de mistério.

No final das contas, o cristianismo se trata mesmo da Verdade e de nada mais.

Textos de minha autoria (como os demais deste canal) originalmente publicados em meu perfil pessoal do facebook em 30 de janeiro de 2024.

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Natanael Pedro Castoldi
Natanael Pedro Castoldi

Written by Natanael Pedro Castoldi

Psicoterapeuta com formação em teologia básica e leituras em história das religiões e simbolismo. Casado com Gabrielle Castoldi.

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