YHWH e o Abismo

Sobre o Senhor e a Serpente Apófis

Natanael Pedro Castoldi
7 min readJun 15, 2024

No poema egípcio que contém o mitologema da morte do Deus Sol (Rá) pela Serpente (Apófis), há um ponto que atraiu minha atenção:

Então o nobre verme picou-o.
Suas maxilas começaram a bater
E todos os seus membros tremiam.
E o veneno invadiu sua carne,
Como o Nilo invade seu território.

Segundo Jung, esse poema era um feitiço cantado para a realização de curas em picadas de serpentes. Curiosamente, a Serpente pica Rá enquanto este caminha, lançada aos seus pés por Ísis, que a fez com saliva e pó da terra. É evidente a associação arcaica com o que se lê no Gênesis 3. Mas há mais aproximações bíblicas, desta vez com o Êxodo, sobretudo com o sinal do rio Nilo transformado em sangue (7:20–21). A profecia de Ezequiel 31–32 contra Faraó contém um imaginário norteador: em 32:2 Faraó é chamado “Dragão” (Tannin), instalado que está junto do Grande Rio — isso em função do explicitamente dito em Ez 29:3, quando o próprio Egito, lar do Nilo, é chamado “Dragão”. Não se ignore que o signo da deusa serpente Uto, padroeira do Baixo Egito, estava incrustado na coroa de Faraó, Ureu, como símbolo de Soberania. O Nilo é recorrentemente comparado a uma Serpente que se esgueira pelo Deserto — feito d’águas, símbolo do Caos Primevo, liga-se ao Abismo genesíaco e ao Dragão. Segundo o comentário rabínico da Torá da ed. Sêfer, o termo “Tannin”, hebraico para “Monstro”, desde quando aparece no Gênesis 1 (traduzido por alguns por “baleia”) se refere a um tipo de criatura excepcional — “no relato do Gênesis nenhum animal é designado particularmente, exceto os Taninim” -, donde tratar-se de um tipo especial de ser, não de um animal como os demais. Esses “Monstros Marinhos” de Gn 1:21 devem ser entendidos como Dragões. Não sem razão o termo utilizado para Serpente em Êxodo 7:9, quando o cajado de Arão se transfigura diante de Faraó, é “Tannin”, donde a Septuaginta traduzir como “Drákon”. Em momento algum o texto desejou designar a Serpente do cajado de Arão como uma serpente comum — o termo, se o fosse o caso, deveria ter sido “nachash”, “ófis” na Septuaginta.

… o primeiro episódio do cajado metamorfoseado em Serpente ocorreu ao redor de um fogo subterrâneo…

É como “nachash” que a Serpente aparece a Moisés pela primeira vez, junto da Sarça, em Êx 4. Então, quando transformado o bordão de Moisés, na Sarça, é “nachash”, mas diante de Faraó é “tannin”. Não se ignore, contudo, o caráter especial da Serpente já em sua aparição no Êx 4, porque a ligação entre Serpente e Fogo também é arcaica. No Rig Veda, Indra, campeão dos Devas ligado à Luz, se bate com a Serpente Vrtra, ligada à Sombra, senhora dos Asuras — ambos os Devas e Asuras são filhos de um único Pai. Os próprios Devas originalmente eram Adityas / Sóis e, serpentes, despojaram-se de suas peles mortais, vencendo a Morte. São muitas as imagens que aproximam o Sol / Fogo da Serpente, como se este emergisse da libertação da Noite / Sombra, desprendendo-se das velhas peles tal qual a Serpente (Ahi), que troca de couro — é assim que o nascer do Sol é descrito no Sátapatha Brahmana. O Rig Veda também é testemunha desse dualismo: Agni, o Fogo Luminoso, é consubstancial a Ahi, símbolo das sombras ínferas e homóloga de Vrtra, o Dragão, assim como Ahi é consubstancial a Agni, porque a Serpente representa uma virtualidade do Fogo, tal como as Trevas são uma virtualidade da Luz — Agni, tal como a Serpente, sobe das fendas das terra, e brota ardente e vívido da matéria opaca e da sombra, à imagem da Vida que sai da Morte. Note-se que Agni é chamado Serpente Furiosa. Não por outro motivo os Dragões, além do simbolismo aquático, carregam farto simbolismo ígneo, guardadores que são de um fogo oculto em seu ventre e habitantes de fendas profundas, como fogo ctônico — seus tesouros d’ouro têm analogias com o Fogo. Tradicionalmente, a Sarça Ardente fora encontrada por Moisés na mesma fenda ou caverna do Sinai na qual ele presenciara as teofanias da ocasião da entrega das Tábuas da Lei, de maneira que o primeiro episódio do cajado metamorfoseado em Serpente ocorreu ao redor de um fogo subterrâneo — fogo ínfero similar ao que Elias vira no encontro com YHWH nesta mesma fenda.

Ainda no Rig Veda, o Fogo recém-acendido é descrito como “sem pé e sem cabeça”, ou sem extremidades, como a Serpente do Mundo, Ouroboros, de cujo desmembramento vem a matéria-prima da Criação. Ouroboros, que morde a própria cauda, é circular — Leviatã, símbolo do Abismo, Tehom (Thwm / Tiamat), e o próprio Tohu (Thw / Caos), significa “o que se recolhe em anéis ou voltas”. Pode-se mesmo pensar em Leviatã como a Serpente Macho, a contraparte masculina do Abismo (Thwm), que entre os pelasgos era Ófion ou Bóreas, o Vento Norte — donde o notável verso 13 de Jó 26, muitíssimo similar a como Eurínome (Iahu, a Pomba Exaltada dos sumérios), “enrolando” o Vento com as mãos, gerou Ófion: “Pelo seu Espírito [Rúach — Vento] ornou os céus; a sua mão formou a serpente enroscadiça”. Ófion, ao querer assumir para si o mérito da Criação contra Eurínome, teve sua cabeça esmagada por ela e acabou aprisionado nos Pilares da Terra, como Ouroboros. Também é com um esfregar das mãos que Ísis cria Apófis (Serpente do Caos), a sina de Rá, com pó umedecido. Os Salmos 18, 74:13–14 e 104, Isaías 51:9–10 e Naum 1:4 sugerem motivos arcaicos análogos, dos Mares (Yam) e os Monstros (Taninim) do Abismo (Tohu [Leviatã], Bohu [Beemote] e Rahab — Tehom) sendo derrotados pelo Vento de YHWH e empurrados para os Pilares do Mundo.

A Serpente de Bronze é um resíduo desse simbolismo javista arcaico…

A presença do Dragão junto da Sarça Ardente possui desdobramentos ainda mais interessantes, porque o Espinheiro, como é a Sarça, possui um significado universal ligado a Fogo (Harold Blayley), sendo planta sagrada de deuses elevados. No Egito, o Espinheiro estava ligado ao deus Unbu; entre os assírios era chamado “Árvore de Luz”, sagrada a Ashur; na Arábia, o lótus espinhoso era dedicado a Baal, o Altíssimo. Uma antiga tradição cristã afirma que os espinhos da Coroa do Cristo Crucificado correspondiam aos do espinheiro jujube, também chamado de “spina christi”. Como dirá Bayley (A Linguagem Perdida do Simbolismo): “Há poucas dúvidas de que, na infância do Mundo, todas as coisas espinhosas ou pontudas de todo o Globo eram consideradas simbólicas do dardejante, irradiante e penetrante Fogo”. O Fogo é a característica teofânica mais própria de YHWH sinaítico, ancestralmente ligado a toda a imagética vulcânica, incluindo nuvens escuras, relâmpagos, fogos ínferos e terremotos, donde eminentemente atmosférico, aproximado do fertilizador Vento genesíaco e primitivamente simbolizado como Serpente (o motivo perdurou nos Serafim — Saraf, ou “queimar”, “incendiar” [incluem as “serpentes abrasadoras” enviadas por Deus em Números 21:6]). A Serpente de Bronze (Números 21:8–9) é um resíduo desse simbolismo javista arcaico e há um midrash de Êxodo 4:24 segundo o qual o ataque de YHWH a Moisés no Deserto se deu com Deus transformado em uma imensa Serpente.

Como o Salmo 104:26 destaca (“… e o leviatã que formaste para nele folgar”), que é o entendimento inscrito em Gênesis 1, o desenvolvimento teológico das implicações da onipotência do Único Deus, tornado, então, não um rival do Abismo e um Criador segundo o Seu poder de derrotar o Oceano Primevo, mas Elohim Todo-Poderoso e Criador ex nihilo, a Serpente, ou o Abismo, respondem imediatamente ao comando da Sua Palavra e obedecem rigidamente aos limites que Ele impôs. Doutra forma: Ele é o Senhor de toda a Criação, inclusive dos Mares, como bem o ilustra o livro do profeta Jonas, e comanda o Abismo como deseja, tal como se vê no relato genesíaco do Dilúvio. Isso estabelece YHWH Elohim como Senhor da Ordem e Senhor do Caos, Deus da Montanha, do Deserto e da Noite, mas também o Senhor do Dia e das Nações. Ele segura nas mãos todo o Cosmos:

Quem pôde medir a águas na concha da sua mão? Quem conseguiu avaliar a extensão dos céus a palmos, medir o pó da terra com o alqueire, ou calcular o peso da terra, ou ainda pesar as montanhas na balança e as colinas nos seus pratos? — Isaías 40:12

… para o Egito Ele era Deus da Morte, do Caos e da Noite.

Para os hebreus escravizados no Egito, YHWH Elohim era Salvação, mas para o Egito Ele era Deus da Morte, do Caos e da Noite. Comandando a Serpente Apófis, cuja presença se fez conhecer entre os egípcios quando o Nilo fora tornado sangue — e com todo o Caos subsequente das pragas, principalmente daqueles ligadas ao Grande Rio -, fê-la finalmente morder o calcanhar de Rá, matando o Sol, engolido pelo Abismo. Nessa hora, quando YHWH transformou o Dia em Noite, quando o Rá foi morto pela Serpente, Sammael, o Anjo da Morte, adentrou o palácio de Faraó e matou o seu primogênito. Nota-se como Faraó era considerado filho de Rá, e anteriormente era, quando vivo, filho de Hórus (deus Sol substituto de Rá) e, na morte, o próprio Osíris. O filho de Faraó era, pois, o Hórus nascente, enquanto o Faraó pai se encaminhava para a condição osiriana da Morte.

Quando Apófis engoliu Rá, no Céu, no mesmo instante o Hórus terrestre, o primogênito de Faraó, fora morto. Considerando-se que o Faraó era a personificação ou o portador da Ordem Universal, Maat, o ingresso da Serpente em seus aposentos, no meio do eclipse, foi a conclusão definitiva dos três sinais antecessores, de quando o Dragão do cajado de Arão engolira as duas serpentes dos cajados dos magos faraônicos, Janes e Jambres (Êxodo 7), de quando YHWH fez descer fogo e saraiva dos céus nebulosos (Êxodo 9) e de quando ele mesmo, Faraó, ficara coberto de úlceras (Êxodo 9): o Caos imperou, Apófis venceu. Para os egípcios, ficou patente que o Deus dos judeus era o próprio Abismo. Por isso Ele lhes abrirá o Mar. Por isso, quando Faraó decide perseguir Israel pelo Mar, é Faraó desafiando o próprio YWHW Elohim, apenas para ser sepultado pelo Senhor e junto de seus exércitos no ventre dos infernos.

Texto de minha autoria (como os demais deste canal) originalmente publicado em meu perfil pessoal do facebook em 14 de junho de 2024.

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Natanael Pedro Castoldi

Psicoterapeuta com formação em teologia básica e leituras em antropologia e crítica literária. Casado com Gabrielle Castoldi.