É Possível Ser Feliz?

Um apelo à realidade

Natanael Pedro Castoldi
7 min readMay 23, 2024

Uma das tragédias da presente “onda coach” é a desconsideração de um fato muito óbvio sobre a humanidade, mas que tem sido irresponsavelmente ignorado pelos perpetradores massivos das “novas ideias de sucesso”: apenas uma minoria das pessoas possui, de fato, as excepcionais qualidades demandadas para tirar proveito efetivo, na prática, de seus preceitos — falo de qualidades inerentes, daquele potencial tácito ao extraordinário, além daquelas facilidades circunstanciais muito incomuns. Esta constatação está posta na orientação que o Dr. Virgílio de Camargo Pacheco dava aos seus leitores já nos anos 1950, para protegê-los do sedutor e ofídico “canto da sereia”, tal como “cantado” desde o Éden, a saber: inflamando o desejo do mirabolante pela estimulação fantasiosa da imaginação.

…a excepcionalidade, sendo redundante, é uma exceção na espécie.

Ocorre que é muito fácil instilar desejos de toda a espécie na mente desguarnecida e crédula da multidão. Num piscar de olhos os pensamentos são dominados por imagens de objetos de desejo de -aparente- altíssimo valor social e prenhes de promessas de plena realização, por isso mesmo irresistíveis, hipnotizantes, desencadeadores das excitabilidades dopamínicas da previsão de sua conquista futura, dada no ímpeto e no fervor do momento como certa e garantida. É, sim, fácil instalar toda a espécie de insatisfação no coração das pessoas, ofertando-lhes “ideias” que nunca antes cogitaram e, com elas, criando necessidades que antes não existiam — com a distorção de que a vida só terá valor e só será “boa” se essas falsas necessidades forem satisfeitas. O verme do sentimento de escassez, com todo o apelo emocional a ele associado (da angústia ao desespero), está de par com expectativas excessivamente altas, baseadas na suscetibilidade à ilusão e ao ser iludido, que vai buscar fontes, por sua vez, na bajulação do ouvinte e em uma afirmação irrealista das capacidades e do potencial individual, sempre precedida pelo velho e mais básico instrumento de manipulação psíquica (W. Sargant): o subjugamento e a humilhação do espectador, para que se sinta impotente e, altamente impressionável pela comoção diante daquele que se impõe autoritativamente e ao qual se entrega religiosamente, de todo sugestionável. Sentindo-se inerme, porque reafirmado em sua pequenez, é, então, amparado pela ideia do “potencial latente” e assegurado do sucesso se souber dominar o instrumento e todos os passos e princípios que o “rei” ora oferece. Este, já extremamente bem-sucedido, apela pelo exemplo, dotado, via de regra, de um perfil carismático ou profético, e dá a impressão de que seus seguidores, se o “obedecerem” com convicção e disciplina suficientes, se tornarão como ele e poderão ter acesso ao que ele tem. Repete-se, porém: a absoluta maioria daqueles que caíram no “canto da sereia” não é e não conseguirá ser grande assim simplesmente porque a excepcionalidade, sendo redundante, é uma exceção na espécie.

Isso significa que sequer os instrumentos oferecidos serão necessariamente bem administrados. Não anulando o fato de que muitos dos recursos disseminados pelo “universo coach” são simplificações ignorantes e irresponsáveis de determinados princípios extraídos da observação empírica da psique. Um deles, muito presente no ridículo do “coach quântico”, que é a versão mais feiticeira das linhas atuais desses “coaxares” todos, é o tal de “Pensamento Positivo”, baseado em uma suposta “Lei da Atração”, mais dividenda de um panteísmo pauteurizado do que da Física propriamente dita. A ideia é que o indivíduo precisa construir em sua mente a imagem mais exata possível daquilo que ele quer conquistar ou possuir e deve mentalizá-la, junto com o desejo, da maneira mais forte, mais convicta que conseguir, porque assim ele se aproximará mais de sua realização e de sua obtenção — porque a própria “coisa” acabará se aproximando dele. O desastre em potencial radicado aqui está no fomento irrestrito das imaginações mais fantasiosas e pretensiosas possíveis, na maioria dos casos muito além do limiar do realista e do verdadeiramente possível, e a mente humana não trabalha bem com autoengano e com inverdade. Como demonstra Jonathan Haidt (A Hipótese da Felicidade), a dimensão de nosso desejo por algo gerará, e isso tem fundamento neurológico, uma tendência opositiva inerente, donde sermos recorrentemente assaltados e aterrorizados por pensamentos intrusivos que representam justamente o inverso daquilo que desejamos com mais intensidade. Jung verá nisso a tendência compensatória e de autoproteção da psique, que quererá se defender de todo o unilateralismo. Ao fim e ao cabo, se não houver vigor psíquico e se determinadas faculdades mentais não estiverem bem treinadas, a aderência ao tal “Pensamento Positivo” redundará mais em sofrimento mental, do tipo obsessivo e/ou compulsivo, ansioso e depressivo, e, das tendências ao contrário, em autossabotagem, do que em progresso substancial.

A única maneira verdadeiramente saudável de desenvolver um “pensamento positivo” é aquela que respeita a estrutura da realidade e a consciência de si, daquilo que é verdade a respeito do indivíduo que quer pensar positivamente. Narciso Irala e Donald Laird coincidem aqui, com este ofertando um exercício imaginativo dirigido, que diz, em síntese, para que o sujeito, antes de dormir, construa uma visão otimista, mas realista, do dia subsequente, o desenvolvendo previdentemente em narrativa, como se o visse acontecendo, e descrevendo-o realisticamente tal como ele provavelmente será, atribuindo adjetivos positivos e emoções satisfatórias quando viável e após a realização das tarefas divisadas na imaginação. Tudo isso se faz evitando o emprego de termos negativos, tanto o “não” quanto palavras associadas a problemas — pela simples razão de que a mente, em seu espectro mais profundo, não leva em conta o “não” mais do que os termos seguintes, que sejam: “terei medo”. Por exemplo:

Amanhã levantarei às 6:30 da manhã, tomarei um bom banho quente e, após, farei meu café da manhã, que estará gostoso. Indo ao trabalho, seguirei pela avenida principal, que estará movimentada, mas eu posso lidar com isso. Chegarei ao trabalho às 8:00 e me sentarei em minha confortável cadeira, para logo mais participar da reunião. Farei a exposição de meu projeto e falarei bem, porque eu saberei tudo o que preciso falar, e terá dado tudo certo no final…

Note como tudo soou bem, viável e aprazível, sem suscitar a angústia da escassez e da necessidade extrema, sempre radicada no desejo inflamado pelo mirabolante e no medo de não obtê-lo. As aspirações aqui são realistas e, baseadas na melhor probabilidade, não indicam necessariamente uma catástrofe “cósmica” no caso de não saírem exatamente como o planejado. São capazes de inspirar ao invés de tiranizar, acalmando o coração e viabilizando, pelo reforçamento imaginativo da ação eficaz, o sucesso pretendido — tímido e pontual, mas válido. Porque as pessoas, e eu me incluo aqui, na medida em que -geralmente- não são excepcionais, progridem bem quando aceitam o fardo diário dos deveres corriqueiros e cotidianos, fazendo o que é certo todos os dias e do melhor modo, para que consigam avançar, embora lentamente, no longo prazo. O Dr. Virgílio, supracitado, acrescentará a isso o recurso à Meta de Substituição, que vem em lugar da Meta Ideal:

Certo é que, ao iniciarmos uma nova etapa na vida, nosso objetivo, durante seu decurso, é atingirmos uma meta ideal, que corresponda a todos os nossos desejos, confessos ou ocultos. Na prática, porém, só excepcionalmente se consegue atingir em cheio essa meta ideal, síntese de todos os nossos anelos. Em geral, na grande maioria dos casos, a pessoa tem que se contentar com uma meta ‘ersatz’, de substituição, bem mais acanhada, mais despretensiosa do que a inicialmente visada.
A possibilidade de adaptação de cada um a esta meta de substituição […] encerra boa parte do segredo da relativa felicidade que se pode gozar na vida. — Vença Seus Complexos, 1959, p. 90

O grande limitador para o desenvolvimento dessa Meta de Substituição, assim como para a realização da boa Narrativa do Dia Seguinte, é que tais movimentos da inteligência se valem de algo que grande parte das pessoas de nosso tempo, que é tempo de massificação, não têm desenvolvido, e que representa um dos problemas mais perenes da filosofia: o conhecimento de si. A Meta Ideal, via de regra, não depende de um exercício detido de autoconhecimento, porque ela vai ser procurada na síntese das aspirações coletivas, gerais, naqueles bens que se encarnam nos modismos de cada tempo e que se disseminam de modo viral. Quem estiver entregue ao fluxo dos automatismos da vida na cultura de massas, invariavelmente verterá no “caminho largo” das ofertas públicas de “felicidade”, sem critérios internalizados definidos bem o suficiente para resistir-lhes, acabando por ser lançado aos ventos como folha seca, indo ora para cá, ora para lá, numa verdadeira esquizofrenia existencial, porque não haverá muito nexo entre os diferentes objetos de desejo. Esse indivíduo também estará sem anticorpos mentais para resistir às pressões de turba, de manada, quando da eclosão de situações críticas no âmbito coletivo, vendo-se arrastado para fanatismos, num momento, e para o “estoque de papel higiênico”, no momento seguinte.

… a boa vida só existe, neste Mundo carregada de uma necessária e justa medida de sofrimento…

A Meta de Substituição, por outro lado, na medida em que é muito mais personalizada, pedirá por um nível distinto de noção a respeito de si, daquilo que se quer e dos próprios limites. Saber quem se é — eis a conquista mais básica e mais elementar de todo esse processo, necessária, ainda que em gérmen, para o começo de uma trajetória saudável, mas seguindo inconclusa ou em progresso mesmo no limiar do fim da jornada. Importa, todavia, que o sujeito se ocupe algum tempo consigo mesmo, com auto-observação e com recuo sistemático na própria biografia (anamnese), para que tenha um conhecimento básico sobre suas raízes, seus valores, suas possibilidades, suas capacidades e seus “espinhos na carne”. Daí será capaz de, tomando posse da Meta Ideal, materializá-la e imanentizá-la na realidade dos particulares e dos possíveis, na sua realidade própria, pessoal — para que a personalize, enfim, reduzindo-a, do Absoluto, às medidas dos relativos.

Um indivíduo tal, em verdadeira Individuação, saberá que a boa vida só existe, neste Mundo, no lusco-fusco, carregada sempre de uma necessária e justa medida de sofrimento, e não quererá demais aquilo que sabe ser impossível — ou ainda inviável -, para que não sofra desnecessariamente. Não demandará, com isso, aquilo que os neuróticos demandam o tempo inteiro: “tábuas de salvação”, sobressaltos de heroísmo. Donde sua capacidade de encontrar relativa satisfação no dia de amanhã, mesmo — e até principalmente — quando esse dia for corriqueiro.

Texto de minha autoria (como os demais deste canal) originalmente publicado em meu perfil pessoal do facebook em 23 de maio de 2024.

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Natanael Pedro Castoldi

Psicoterapeuta com formação em teologia básica e leituras em antropologia e crítica literária. Casado com Gabrielle Castoldi.