A Cifra Messiânica e a Vida de Cristo Como Arquétipo da História Sagrada

Uma sugestão para a opção narrativa dos evangelistas

Natanael Pedro Castoldi
6 min readSep 28, 2024

A cifra “um tempo, dois tempos e metade do tempo” (Daniel 7:25, 9:27, 12:7 e Apocalipse 12:14) tem me parecido uma constante escatológica na estrutura do pensamento cristão primitivo. Aplicada ao Cristo em Apocalipse 12 e ao código numérico “1260”, jaz inscrita na própria estrutura convencional da narrativa da vida de Jesus, nos Evangelhos, porque ela se organiza em três períodos bem circunscritos: a Infância, o Silêncio e o Ministério.

A Infância está demarcada por uma única história, a da visita da família de Jesus ao Santuário de Jerusalém, em uma páscoa, quando Cristo tinha 12 anos. O menino Jesus é mostrado ali como tendo preferido estar na Casa do Seu Pai do que junto da comitiva familiar, quando esta retornava de Jerusalém. Ele é encontrado pelos parentes sentado no meio dos doutores da Lei, os interrogando (Lucas 2:41–52). Importante neste relato é que ele estava com 12 anos, não com 13, que seria a idade convencional do atingimento da maioridade na cultura judaica, no sentido da maturidade de consciência para a responsabilidade moral, religiosa e legal — ali temos o indicativo da superioridade do menino Jesus, porque antes do tempo já estava a impressionar os doutores. Mas há mais: o 12 por si só é altamente simbólico enquanto a idade significativa do relato da Infância, pela razão de significar uma totalidade de tempo (Um Tempo). A iniciação no Santuário, superando os doutores da Lei, é o fechamento da Infância e o umbral do Silêncio, das quase duas décadas, como se convenciona tradicionalmente, até o ano 30 d.C.

… até a fuga da Mulher para o Deserto e o vasto período de Silêncio no qual a Criança se desenvolve em segredo…

O Silêncio corresponde à maior parte da vida de Cristo no contexto da Encarnação e da Primeira Vinda, e a respeito deste tempo intermediário não há muito a ser dito. Ele deve ser análogo ao “Tempos”. Em Daniel 9 é apontada uma medida de tempo: Um Tempo (Sete Setes), mais Tempos (Sessenta e Dois Setes), com o Messias sendo “cortado” em Sessenta e Dois Setes — mais o Sete Setes inaugural, dando em Sessenta e Nova Setes — , faltando o Último Sete, que desenrolará apenas até a metade (Metade de Um Tempo). Isso aparece em Apocalipse 12, com relação aos 1260 dias, estruturados segundo a cifra, para o tempo de vida do Messias no Deserto, segundo o símbolo escatológico. Impõe-se ali Um Tempo, que é o inaugural, do Nascimento da Criança, até a fuga da Mulher para o Deserto e o vasto período de Silêncio no qual a Criança se desenvolve em segredo, protegida do Dragão. E, então, vem a Metade de Um Tempo, medida por Daniel 9 no símbolo dos três anos e meio, aproximadamente 1260 dias literais.

O Ministério de Cristo, inaugurado nas Bodas de Caná (João 2:1–11), começa com a Mulher (v. 4) expondo o Filho ao Mundo — isto é: tirando-O do Secreto ou do Deserto. Daqui em diante se desdobra a explosiva, altamente intensa e dramática Obra do Salvador, culminada na Paixão, na Via Dolorosa e no Calvário, no Sepulcro até o Terceiro Dia (o dia da eclosão da Vida [Gênesis 1:11–13]) e, derrotado o Dragão (caído como um raio [Lucas 10:18]), este silenciado no Abismo (Apocalipse 20:1–3), na Ressurreição e no período de 40 dias, ressurreto junto dos discípulos até a Ascenção. O número 40 também é simbólico, ligado que está ao tempo da Congregação do Deserto, no Êxodo, mas também ao símbolo do Milênio, pois totaliza 960 horas, a quantidade de anos para que a Estrela de Belém atravesse todo o circuito dos quatro elementos zodiacais.

… o tipo das Bodas do Cordeiro é o período de 40 dias dos discípulos com Jesus Ressurreto…

Na vida de Cristo está inscrito, portanto, o arquétipo da cifra apocalíptica e, na Sua Encarnação em Corpo da Morte, a proporção ou a medida dos Tempos, da História do Seu Corpo, a Igreja, dentro do horizonte escatológico. Como já vimos, o Tempo é ele mesmo inaugurado por Cristo no “Sete Setes”, com a Sua Encarnação, e, na Sua Morte, no “Sessenta e Dois Setes”, inauguram-se os Tempos, isto é: a Era da Igreja, após a fulminante Metade de Um Tempo do Seu Ministério. Pode-se ver o Tempo, o período da Infância da Igreja, como aquele da vida do Messias até o primeiro ano do Séc. II, quando tradicionalmente se convenciona a morte de João da Patmos, o último dos Apóstolos, e, por conseguinte, o fim da Era Apostólica. Está posto em João 21:23 um mistério específico a respeito de João, relativo à sua “imortalidade” — certamente também um símbolo, ou uma totalidade ligada ao seu tempo de vida. Da Patrística em diante, seguindo a cifra, entramos nos Tempos, no dorso da Era da Igreja, durante a qual o Corpo de Cristo está sendo preservado das investidas diretas da Antiga Serpente, recolhido no Deserto (Mateus 16:18) e perscrutando as Estações (1 Tessalonicenses 5:1–3) para o discernimento da chegada do Anticristo, que, à semelhança do Ministério de Cristo, governará pela Metade de Um Tempo, tempo durante o qual o Dragão será libertado do Abismo com o intento de juntar as nações da Terra contra a Igreja para, enfim, tendo imperado por “um pouco de tempo”, ser aniquilado pelo próprio Cristo e por Suas hostes celestes (Apocalipse 20:7–10). Findado o Dia do Juízo, inaugura-se a Eternidade na Nova Jerusalém, com o Povo do Senhor diante do Trono de Deus, todos em corpo glorificado, como Cristo Glorioso — o tipo das Bodas do Cordeiro é o período de 40 dias dos discípulos com Jesus Ressurreto (J. Jeremias de fato identifica na narrativa do período destes 40 dias um sentimento de suspensão temporal).

Penso que, das “estações”, um importante evento está posto em João 12:20–23, quando Filipe leva alguns dos gregos que estavam em Jerusalém para ouvirem a Cristo, sinal suficiente para que o Senhor exclamasse: “É chegada a hora em que o Filho do homem há de ser glorificado.” Veja bem: as primícias dos gentios, tendo sido atingidas, impõem o limiar do fechamento do Ministério de Jesus, voltado para os da “casa de Israel” (Mateus 15:24), cujo curso, através da obra apostólica, seria o do atingimento de todas as Nações da Terra (Mateus 28:18–20), segundo a promessa de Deus para Abraão (Gênesis 12:3). Tanto é assim, que as últimas palavras de Cristo, antes de Ascender aos Céus, apontaram para o atingimento dos Confins, sustentada a Igreja pelo Espírito Santo (Atos 1:7–9), que desceu sobre a Congregação no Pentecostes, uma semana depois. Nos termos da Era Apostólica, o fim da Infância da Igreja, ou o seu esplendor e limiar da maturidade, pode ser identificado com a chegada de Paulo a Atenas, o centro arquetípico do pensamento gentílico, análogo ao pequeno Cristo no Santuário, mas principalmente às idas de Pedro e de Paulo para Roma, afirmativas da semeadura direta do gérmen apostólico na Cidade, o epicentro do Quarto Reino de Daniel 7 e o cerne do mundo pagão — o projeto da conquista de Roma para a Fé está claro na narrativa de Lucas, tanto no seu Evangelho quanto no livro dos Atos, inclusive na opção por alguns relatos positivos envolvendo personagens romanas, indicativa de uma intenção e de uma estratégia missionais com propósito claro (A Vida na Igreja Primitiva, J. Drane).

O final da vida da Igreja espelhará o final da vida de Jesus, após a consumação do Ministério…

Convém, ainda, apontar para a Grande Tribulação, associada à manifestação do Anticristo e à soltura de Satanás, subsequente ao cumprimento da Grande Comissão, como um antítipo da Paixão de Cristo, da qual os martírios cristãos são éctipos (Mateus 24:4–32). O final da vida da Igreja, nos termos de sua existência em Corpo da Morte, espelhará o final da vida de Jesus, após a consumação do Ministério, antecipando a mesma Glória da qual Ele é a primeira manifestação (1 Coríntios 15:20–23).

Se a chegada das primícias dos gentios até Jesus anunciou a Sua Paixão, evidentemente um dos sinais da chegada da estação que anuncia a maturidade do tempo para a inauguração da Metade de Um Tempo, ou da manifestação do Anticristo, deve ser o atingimento cabal dos Confins da Terra (Mateus 24:14). Não por outro motivo, Paulo, em Romanos 11:25, fala da necessidade de a “plenitude dos gentios” ser completada, ou ter entrado no Reino, antes do Fim. Pois será desde os Confins (Gogue e Magogue — Apocalipse 20:8) que Satanás investirá contra a Jerusalém de Deus, ou a Igreja.

Mas, irmãos, acerca dos tempos e das estações, não necessitais de que se vos escreva; porque vós mesmos sabeis muito bem que o dia do Senhor virá como o ladrão de noite.
- 1 Tessalonicenses 5:1–2

Aprendei, pois, esta parábola da figueira: Quando já os seus ramos se tornam tenros e brotam folhas, sabeis que está próximo o verão.
- Mateus 24:32

Texto de minha autoria (como os demais deste canal) originalmente publicado em meu perfil pessoal do facebook em 28 de setembro de 2024.

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Natanael Pedro Castoldi
Natanael Pedro Castoldi

Written by Natanael Pedro Castoldi

Psicoterapeuta com formação em teologia básica e leituras em história das religiões e simbolismo. Casado com Gabrielle Castoldi.

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