A Cruz Olmeca

Acréscimos ao símbolo cruciforme

Natanael Pedro Castoldi
7 min readOct 10, 2024

Em continuidade ao estudo anterior, enfatiza-se melhor a qualidade simbólica da Cruz Olmeca, de tal modo desenvolvida pela ancestral cultura mesoamericana, que carrega convergências notáveis com o sentido da Cruz em nossa própria civilização. Seu significado cósmico, baseado na Rosa dos Ventos, como apontando para os Quatro Cantos, é robustecido pelo círculo de pedra furado ao centro no qual o sacrificado olmeca era amarrado em posição de “X” — o Círculo e a Cruz se comunicam, pois fecha-se um circuito completo ao se conectarem as pontas da Cruz, que representará, então, a divisão de uma Totalidade segundo o quaternário. Esta é a estrutura básica da mandala, o princípio arquitetônico universal dos templos das culturas agrícolas, como vimos ser o caso do santuário piramidal olmeca, e como será o caso dos templos cristãos e hindus, dispostos segundo uma Cruz que esquematiza o Homem — naqueles, o Cristo Crucificado; nestes, o Homem Cósmico.

A divisão do Círculo em quatro partes, segundo a Cruz, deverá simbolizar cada um dos Quatro Elementos que infraestruturam o Mundo. Este é o sentido explícito da Cruz Celta, na qual as retas da Cruz transcendem os limites do Círculo, que contém, por sua vez, nichos representativos do Ar, da Terra, do Fogo e da Água, dotados de qualidades tradicionais do quente, do seco, do úmido e do frio. Na Irlanda, tal divisão quaternária da Cruz aparece na divisão territorial da ilha, separada em quatro províncias mais uma quinta disposta ao centro, a partir de uma porção de cada uma das outras quatro — como na ordem do Acampamento e da Marcha dos hebreus do Êxodo. Este centro está na Cruz Celta como um pequeno círculo dentro do Círculo, bem na intersecção das hastes da Cruz. Em termos elementais, o Cinco é a chamada Quintessência, o eixo solar do qual irradiam, nos raios, a multiformidade temporal e sensível da Realidade — “o centro no qual não há mais nem tempo nem mudança de nenhuma espécie, é o sítio de passagem ou de comunicação simbólica entre este e o Outro-Mundo” (Chevalier e Gheerbrant — Dicionário de Símbolos / verbete: Cruz). Eis um verdadeiro ônfalo ou Axis Mundi, epítome da mística cristã céltica, um canal que sinaliza a ruptura do tempo e do espaço e o ingresso na Eternidade do Cristo Glorioso.

O Alto e o Baixo estabelecem o circuito da Morte e da Vida, opositivos entre si…

Tudo isso nos remete ao que vimos da Criança Jaguar entre os olmecas: disposta segundo o “X” da Cruz de Santo André, carrega nas mãos os símbolos do Sangue (Água) e do Fogo e deita aos pés os símbolos do Sono e da Morte — símbolos telúrico e ctônico. Os braços e as pernas são como raios que irradiam da barriga da Criança, em cujo centro está o ideograma da Onça, ligada ao Submundo, e, abaixo dele, o ideograma da Cruz. O Alto e o Baixo estabelecem o circuito da Morte e da Vida, opositivos entre si, como o Fogo e a Água, mas interligados pelo Renascimento ou Ressurreição, divisada no “Fogo da Água”, o “Sangue Ardente” — Atl-Tlachinolli -, referido ao sacrifício cruento e abrasado.

O simbolismo opositivo da Cruz insta com muita clareza gráfica em diversas cruzes gregas. Muitas delas apresentam animais rivais subjugados aos seus pés. Os mais comuns são o Leão, a Águia, o Pavão e o Falcão. A Águia e o Pavão representam o orgulho; o Falcão e o Leão representam a crueldade e a violência. Todos os vícios e pecados estão neles condensados e, humilhados, são confrontados pelo crivo da Cruz. A Pomba e a Ovelha também são representadas nos afrescos de catacumbas e sarcófagos, sugerindo como as virtudes podem brotar da Cruz, na mesma medida em que os vícios são por ela abatidos. Em casos nos quais o Leão, a Águia, o Pavão e o Falcão não estão derrotados, mas firmes sob a Cruz, devemos identificar neles motivos crísticos: o Leão é a realeza de Cristo, triunfante da Morte; o Pavão de asas abertas é o símbolo da revelação do Verbo de Deus em Cristo Jesus; a Águia é a sublimidade do Salvador, Elevado nas alturas; o Falcão é o discernimento agudo da visão profética. Note-se como na Cruz estão dispostos, sobretudo, os polos opositivos da Morte e da Vida — do Alto e do Baixo, da Virtude restaurada e do Vício derrotado. O próprio nome grego “Christos” cedeu suas duas primeiras letras, “XP”, para serem precocemente vertidas pelos cristãos no “Rho”, a Cruz em “X” atravessada pelo “P”, ambos conservados dentro do Círculo e habitualmente ladeados pelo “A” e pelo “O”, de “Alfa” e “Ômega”, um título do Deus Encarnado, afirmado como o Princípio e o Fim, o Zênite e o Fundamento, o Primeiro e o Último, Aquele que Desceu e que Subiu. Elevada por Moisés no Deserto, o Princípio e o Fim, o Zênite e o Fundamento, o Primeiro e o Último, Aquele que Desceu e que Subiu., entre o Curativo e o Mortal.

… a Serpente de Bronze, presa à Cruz, ou ao “Tau”, deixa patente essa tensão entre os Céus e os Ínferos…

Uma antiga tradição dirá que Isaque, posto como sacrifício no braseiro do altar, foi poupado porque a madeira que ele carregou nos ombros, enquanto subia pelas encostas do Moriá, tinha o formato da Cruz, do Tau, como posteriormente fora o formato da Cruz da Serpente de Bronze. O mesmo sinal, o Tau, deve ter sido aquele disposto pelos hebreus do Êxodo nos umbrais das portas de suas casas no Egito, para que o Anjo da Morte os tomasse por inocentes e passasse ao largo de suas residências — um Tau feito do sangue do cordeiro pascal, diga-se. Nas pedras do Urim e Tumim, utilizadas pelos sacerdotes para a tomada de decisões jurídicas segundo a Lei veterotestamentária, estavam o “Álef” e o “Tau” — Álef para “culpado”, Tau para “inocente”. A própria Cruz de Cristo é pensada, em diversas linhas, como análoga à Árvore da Vida — até mesmo feita da madeira da Árvore da Vida, estando hoje ressurreta e plantada no Paraíso. Reforçada está a dualidade que tensiona na Cruz: o horizontal, humano e mortal; o vertical, divino e eterno.

Divisada como Axis Mundi, a Cruz terá, para o patriarca Irineu, um sentido cósmico, segundo quem o Cristo, vindo em carne, foi pregado no Madeiro de modo a resumir em Si o Universo — o gérmen da Nova Criação. Aos pés da Cruz, se verá na tradição, estará a Serpente amordaçada e acorrentada e, sob a terra, recebendo sobre si o Sangue de Jesus, o crânio do Primeiro Adão. Cirilo de Jerusalém dirá, por sua vez, que Deus Filho, ao abrir suas mãos na Cruz, abraçou os limites da “oikumene”, do Mundo habitado, donde o Calvário é o Umbigo do Mundo. Lactâncio, enfim, verá nos braços estendidos do Crucificado o abraço de Deus em todo o círculo da Terra. As aproximações entre estas sentenças e aquelas do Adão Glorioso, de antes da Queda, alto como a distância entre Terra e o Céu e capaz de tocar e manter sob si, esticando os braços, os Quatro Cantos, não devem ser apenas coincidências. Em Jesus, vimos agora, a Cruz adquire tamanho universal, donde revolvemos à Árvore da Vida, que é a Árvore do Mundo.

… a Cruz adquire tamanho universal, donde revolvemos à Árvore do Mundo.

Na sociedade agrícola dos olmecas e, em seguida, dos maias e astecas, a Cruz de Santo André é o esquema do montículo no qual é plantada a cultura vegetal — rodeada de sulcos, é depositada no meio do pequeno monte. A planta irrompe, viva, bem no eixo do esquema cruciforme, análoga ao coração pulsante no peito do homem e ao coração flamejante do ventre da Terra — em todos os casos, o Fogo Interior e a Fonte da Vida. Cada montículo cultivado será, portanto, um éctipo da Montanha Sagrada e da estrutura do Mundo, interligando os Quatro Cantos a um eixo que sobe do Submundo (as raízes) na direção do Céu e do Sol (caule e folhas). Nesse sentido, a Cruz Olmeca também é a Árvore do Mundo, tipificada em cada rebento floral. Em termos estritamente mitológicos, o Filho da Divindade, primogênito do Céu e da Terra, é representativo da vegetação e, por conseguinte, alinhado aos ciclos de morte e renascimento das plantas, estando associado, por sua morte e seu despedaçamento, seguidos de seu enterramento, à origem da agricultura e das culturas vegetais privilegiadas — seja o milho, seja o trigo, sejam certos tubérculos. Este Filho da Divindade, tão ligado que está à Terra e ao regime do clima, jaz especialmente perto dos homens, dos quais é amigo, auxiliar e arquétipo, ou forma ideal. Algo destes motivos está presente no Gênesis, quando Adão, a Imagem de Deus, é moldado do barro e plantado no Jardim, e transparecerá sutilmente em Cristo, na Ressurreição ao Terceiro Dia — no Gênesis, este é o dia da eclosão da vida vegetal desde o ventre da Terra, fertilizada pelo Espírito do Criador.

Entre os indígenas mesoamericanos, a Cruz é um dos signos de Xiuhtecutli, o deus fogo, habitante da fornalha do centro da Terra — ou seja: ligado aos Ínferos, mas também ao Fogo Interno, que é a matriz da Vida. Este Centro da Terra, o eixo no qual convergem os contrários, é notável na iconografia de Xiuhtecutli, de aparência ambígua: nefasto e amável. O Centro é figurado no Códex Bórgia por uma árvore multicolor coroada pela ave do Leste, Quetzal, e germinada do corpo da deusa terrestre, símbolo do Ocidente. Esta Árvore Cósmica é flanqueada por Quetzalcoatl, aquele que é sacrificado no braseiro para fazer nascer o Sol, e por Macuilxochitl, a divindade da aurora, da primavera e da fertilidade. Em outros códices ameríndios, a Árvore da Vida é uma Cruz de Lorena com sete flores em seus braços, representando uma divindade agrária. Noutros casos, o septenário é simbolizado por seis flores e pelo Pássaro Solar, que está no meio do Céu.

Texto de minha autoria (como os demais deste canal) originalmente publicado em meu perfil pessoal do facebook em 10 de outubro de 2024.

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Natanael Pedro Castoldi
Natanael Pedro Castoldi

Written by Natanael Pedro Castoldi

Psicoterapeuta com formação em teologia básica e leituras em história das religiões e simbolismo. Casado com Gabrielle Castoldi.

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