O Mitologema da Criança Divina em Daniel 2

E de como isso nos aponta para Cristo

Natanael Pedro Castoldi
14 min readOct 10, 2024

alguns meses observei, nos meus estudos sobre a Criança Divina em Karl Kerényi (A Pesquisa Humanista da Alma), elementos convergentes entre o mitologema da Criança e o Sonho de Nabucodonosor, conforme interpretado em Daniel 7, rememorando o impacto que tive ao reencontrá-lo sob Fulcanelli (Finis Gloriae Mundi). O mitologema da Criança está prenhe de um sentimento de plenitude primitiva, pré-temporal, evidenciado tanto no símbolo do Bebê, quanto no cenário típico de suas aparições no Mito: costas rochosas, açoitadas pelo Mar, encostas de montanhas e cavernas — é um cenário pedregoso, inerte, carregado do simbolismo lítico da densidade uniforme, da perenidade imortal, da rupestre antiguidade, da totalidade fechada em si mesma e prenhe de potencial genesíaco, no que se assemelha às águas primevas do Oceano.

Foi ali que eu busquei elementos para uma interpretação simbólica do Sonho, uma vez que ele apresenta a Montanha Cósmica. Ao final da multiformidade e da complexidade descensional da existência histórica dos impérios globais, uma Pedra Celeste, cortada da Eternidade, desce e golpeia os pés da Estátua, a esmigalhando até dela não sobrar nada e fazendo imperar apenas o imenso vulto rochoso da Montanha, do topo da qual a Pedra se soltou e à qual se reintegrou — no sentido de que ela mesma, uma vez exterminados os reinos da Terra, virou a própria Montanha, isto é: a totalidade indivisa da Eternidade. Foram essas as imagens que, encontradas no motivo da Criança Divina, apliquei ao estudo simbólico de Daniel 2, mas na ocasião não me passou pela cabeça que a própria Criança Divina, e não apenas o seu cenário de perenidade e virtualidade criacional, está presente no Sonho.

Essa questão me surgiu quando estive às voltas com o tema da Montanha Cósmica há algumas semanas: a partícula, ou a lasca da Montanha, que, afinal, é a própria Montanha. Peguei-me, de súbito, revolvido ao motivo da Criança: “este é o próprio símbolo da Criança Divina!”. Não há espaço aqui para a exploração completa do mitologema, mas é importante observar duas características presentes no messianismo, que jaz em gérmen na escatologia do profeta Daniel, a primeira delas a seguir — a outra, mais abaixo.

… é descrito como um Ancião de Dias, enquanto é também chamado de Menino…

O Filho do Homem, por ele divisado próximo ao Trono de Deus (Daniel 7), é descrito como um Ancião de Dias, enquanto é também chamado na tradição judaica, e sob Enoque ou Metatron, de Menino — um Ancião, dada a sua antiguidade pré-criacional e a sua sabedoria; um Menino, por ser o gerado Filho de Deus, no Céu, depois (em um sentido que não pode ser cronológico) das hostes angelicais. Gorion (As Lendas do Povo Judeu) afirma que o significado da ordem divina para o Sexto Dia, “Produza a terra alma vivente” — Gn 1:24, é: “Produza a terra o espírito do primeiro homem” — implicando que mesmo o princípio vital do Terceiro Dia (v. 12) já era segundo a perspectiva da vida de Adão Glorioso, como o foi para a o sopro vital dos animais. Quer-se, com isso, afirmar que a Imagem de Deus é o fundamento desde o qual toda a Criação é ordenada. Outra lenda judaica catalogada por Gorion mostra o corpo de Adão estabelecido no início da Criação, moldado pelo Senhor como a primeira coisa criada, sendo finalmente despertado apenas no término de toda a obra. Robert Graves (O Livro do Gênese), em complemento, aponta para as lendas segundo as quais o corpo de Adão teria proporções cósmicas, ligando a Terra e o Céu em sua altura e os Quatro Cantos com seus braços — uma visão em consonância com os relatos da sua confecção com os barros ou as terras dos Quatro Cantos, todas implicando na visão da Imagem de Deus no Homem como o eixo ou a base da Criação, explicitada no que segue:

Adão, primeiro homem, era a luz do mundo e o sangue do sangue do Eterno.
A Terra era deserta e vazia, a escuridão pairava sobre a profundeza e o espírito do Rei Messias, dizem outros, o espírito de Adão, pairava sobre a água.
— Gorion, p. 37

“Adão” e “Messias” são termos intercambiáveis. Quando Adão caiu da sua glória auroral, sendo a Imagem de Deus na Terra, o Senhor, segundo a tradição enóquica, separou para Si e no Céu a Metatron, criado simultaneamente com Adão e prevista a Queda do Homem, para que o Senhor não ficasse sem Imagem Sua no Templo Celestial, caída que estava a Sua Imagem no Templo Terrestrial. Em todos os casos, os desenvolvimentos cosmológicos e escatológicos da tradição enóquica lançam raízes em um tempo não tão posterior ao do profeta Daniel, com a redação do Enoque Etíope remontando até ao Séc. IV a.C. — leve-se em conta que a redação não deve se confundir com a origem da tradição, sendo sempre sucessória. Ulteriormente, o Filho do Homem, assimilado pelo Messias, absorveu em Si toda a imagética relativa a Metatron, e se pôde chegar, na revelação neotestamentária, ao entendimento de que Deus Filho, o Filho do Homem, é o verdadeiro Logos Divino (Pv 8:22–31), através do qual toda a Criação foi feita, sendo Ele já e desde a eternidade a Imagem do Pai, gerado n’Ele antes da fundação do Mundo (1 Pe 1:19–20; Hb 1:1–6) e sob o testemunho dos anjos (Jó 38:4–7) — o Fim como no Princípio, pois a mesma cena se repete, na Eternidade, quando o Cordeiro Imolado sobe do Abismo para o meio do Trono (Ap 4 e 5). Sobre essas questões eu já discorri com profundidade noutras ocasiões, importando a consolidação da perspectiva de que o Filho do Homem, Ancião e Menino, é o Primeiro e o Último (Ap 1:17), uma imagem que está em consonância com o lugar ocupado pelo Menino Jesus no meio dos Anciãos do Templo de Jerusalém, aos quais superou em sabedoria e conhecimento da Lei, mesmo tendo apenas 12 anos (Lc 2:41–52).

… o Filho do Homem, Ancião e Menino, é o Primeiro e o Último…

A hipótese de que Daniel, tendo tomado conhecimento visionário do Filho do Homem, estivesse também munido do conhecimento esclarecido ou intuitivo do motivo da Criança Divina — o que me parece estar claro na expressão “Filho”, indicando uma noção de sua posse do motivo messiânico do intercâmbio entre o Menino e o Ancião -, deve nos recomendar a uma leitura de Daniel 2 capaz de identificar na lasca da Pedra da Montanha, na Rocha Celeste, que é pequena, um símbolo messiânico — porque será desde a tradição imagética estabelecida por Daniel, entre outras, que os apóstolos e evangelistas saberão reconhecer a Rocha, em suas manifestações no Antigo Testamento, como tipos de Cristo, a Pedra Angular (1 Co 10:4). A pequena Rocha Celeste, desprendida da Eternidade para um ingresso fulminante na História, saída da Montanha e a própria Montanha, expandindo-se até o atingimento de proporções cósmicas, é uma expressão clara do mitologema da Criança Divina.

Isso nos impõe a outra característica do messianismo, apenas muito indiretamente ligada ao texto de Daniel, mas evidentemente presente na sua expressão histórica, em Cristo, cujo natalício está repleto de elementos do motivo da Criança. O nascimento em uma caverna rústica, longe da humanidade civilizada e próximo dos animais e dos pastores, evoca claramente o cenário supracitado. Eliade (Tratado de História das Religiões) dirá que a Criança Divina, ao nascer entre os elementos e deslocada da humanidade, reatualiza o momento cosmológico das Origens e, por conseguinte, vem destinada a realizações extraordinárias, não convencionais — Moisés, Rômulo e Remo, Maui, Siegfried e Jesus Cristo são só alguns dos exemplos conhecidos. A indicação estelar do local do nascimento do Menino Deus, Jesus, é igualmente evocativa, principalmente nas tradições que descrevem a Estrela de Belém como lançando um verdadeiro pilar de luz diretamente na Caverna, no ventre de Maria (Eliade — Mefistófeles e o Andrógino) — um antítipo da Escada de Jacó, de como os “Mundos” se interligam (Gorion, p. 195), sobretudo pela repetição da descida das hostes angelicais, desta vez nos campos de Belém:

E, no mesmo instante, apareceu com o anjo uma multidão dos exércitos celestiais, louvando a Deus, e dizendo: Glória a Deus nas alturas, Paz na terra, boa vontade para com os homens.
- Lucas 2:13–14

A correlação da Parte com o Todo e do Todo na Parte, bem visível em Daniel 2, carrega toda a tônica do mitologema que ora estudamos. Kerényi, em sua pesquisa, expõe vários mitos que apresentam a Criança Divina como tendo dimensões univérsicas, colossais, e contendo dentro de si, em gérmen, todo o Mundo — isto é: todas as possibilidades latentes do Mundo. Neste sentido, ela será uma versão do Ovo Cósmico, elucidando melhor a sua ligação com o Mar e com as Águas Genesíacas. Impõe-se, aqui, a Totalidade encapsulada na Parte — na Criança está o Começo e, de seus desdobramentos extrovertidos, ou objetivos, o próprio Fim de todas as coisas. Quando a Criança Divina é posta no Mundo, no ventre da Terra, ela será o arauto de uma Nova Criação:

[…] é o estado anterior ao pecado e, portanto, o estado edênico, simbolizado em diversas tradições pelo retorno ao estado embrionário, em cuja proximidade está a infância.
- Chevalier e Cheerbrant, Dicionário de Símbolos (verbete: Criança)

Enfim, quando seu pleno desenvolvimento está prestes a se completar, a criança, menino ou menina, descobre sua verdadeira identidade e institui uma nova ordem, corrigindo todos os erros precedentes.
- Cliff, Dicionário dos Símbolos / Org.: Eliade e Couliano (verbete: Criança)

Uma das personagens folclóricos mais impressionantes neste estudo é a chamada “Criança Jaguar” (Magni, El Sistema de Pensamiento Olmeca), estudada por mim em meados de 2019. A cosmologia do povo olmeca, radicado na América Central de cerca de 1.500 a.C. e matriz civilizadora dos maias e dos astecas, apresenta três níveis: Submundo, Terra e Céu, interligados por um eixo simbolizado pela Cruz, chamada de Cruz de Santo André e ligada a Quetzalcoatl, a Criança Divina dos astecas, e princípio arquitetônico dos templos olmecas, ordenados em conformidade com os Quatro Cantos. No meio do templo piramidal de quatro lados localizava-se uma gruta, uma caverna simbolizadora da origem do Homem, ela mesma um “sanctum sanctorum” — como o de Delfos e o do Templo de Salmão -, guardadora do Fogo Eterno, ou do coração flamejante da Terra, também presente no braseiro posicionado no topo da estrutura.

O fogo levado pelos sacerdotes para o braseiro do holocausto era retirado do santíssimo do templo…

O calendário do ano solar olmeca se dividia em 52 partes, vinculadas à Cruz de Santo André em um jogo asteca no qual a Cruz era segmentada em 52 “casas”. O final do ano solar segundo o calendário mesoamericano, quando se aproximava o término a 52ª “parte”, era sempre acompanhado da expectativa apreensiva de que o Sol, desaparecido na última noite do ano, não mais voltasse a nascer, culminando no Fim do Mundo. Para que isso fosse evitado, os astecas realizavam o ritual do Fogo Novo, no qual eram “atados” os 52 fragmentos de ano passados ao próximo ano. Nesta ocasião, os habitantes da capital, Tenochtitlán, batizavam seus ídolos de pedra e utensílios domésticos em cursos de água viva, corrente, para que se reconectassem com as Origens através dos elementos genesíacos, limpavam com perfeição as suas casas e apagavam todas as luzes, permitindo, em silêncio sepulcral, que as trevas noturnas invadissem a tudo, como se o Mundo regressasse ao Vazio primordial, ao Início de tudo. Neste ínterim, os sacerdotes marchavam, em muda procissão, até o topo do santuário. Na mesa de pedra ali disposta, enfim, sacrificavam uma vítima humana, cujo corpo era queimado com fogos notáveis, depois dos quais outros fogos eram acesos no templo e iluminavam toda a cidade. O fogo levado pelos sacerdotes para o braseiro do holocausto era retirado do santíssimo do templo, do ventre da Terra, para ser acendido no topo da Montanha Sagrada (o Templo), como um novo fogo posto no Céu, para garantir o Sol da manhã do Ano Novo, prestes a irradiar no horizonte.

Um outro rito sacrificial realizado pelos astecas nos ajuda a aproximar o fogo, perene no coração da Terra, com a vítima do sacrifício humano. Este era realizado aos pés do Monte/Templo Xipe Totec, “nosso senhor, o Esfolado”. Neste caso, o sacrificado, armado com bastão, devia enfrentar quatro guerreiros e, se os vencesse, um quinto. Derrubado o quinto, a vítima era deitada por quatro sacerdotes em um monólito circular com um furo no centro, onde teria seu peito perfurado para a retirada do coração. O monólito no qual ele era deitado, com seu buraco, era representativo da Caverna Primordial da origem do Homem e do Mundo, de onde tudo vem, para onde tudo volta e de onde tudo retorna. O sangue quente da vítima posicionada segundo a Cruz de Santo André — pés e mãos amarrados -, derramado para dentro do furo, era o princípio vital humano voltando à Origem para garantir a fecundidade da humanidade — há aqui uma espécie de magia simpática, sendo patente a analogia com o intercurso sexual, porque o furo, a Caverna, pensada como o útero da Terra, era útero da mulher (metaforicamente). O peito do sacrificado era também análogo à Caverna Primordial e o seu coração, pois, ao Fogo Eterno do coração da Terra, ligado ritualmente, como vimos acima, ao Fogo Celeste, ou ao Sol. Assim, temos, como na pirâmide, os Quatro Cantos, estes sinalizados pelos membros, e o Centro, ou Axis Mundi, sinalizado pelo peito e pelo coração pulsante. A Cruz Olmeca é, em vista destas coisas, como um pilar que conecta os Quatro Cantos e os Três Níveis do Cosmos, uma vez que seu centro interliga o Fogo do Submundo e, portanto, os Ínferos, e o Fogo Celeste e, portanto, o Céu. Neste caso, é uma verdadeira Árvore do Mundo. Seu aspecto infernal aparece em figurações nas quais a Cruz é associada às mandíbulas e às pintas do jaguar, animal símbolo da Noite e do Submundo — isso se encontra até mesmo na cultura tapajônica, da Amazônia.

… a Criança Jaguar está tanto no Alto quanto no Baixo e como seu Corpo se eleva dos Ínferos, nos pés, e aos Céus, nas mãos.

A ligação entre a Cruz e o Jaguar é importante, pois nos remete à Criança Jaguar, já aludida. A ligação da Criança com o Quatro, ou a Totalidade, e como Axis Mundi, é transparente na iconografia olmeca, que ora a apresenta deitada no colo de um homem, ora a coloca no meio de quatro máscaras hibridas, dispostas segundo a Cruz e sobrepostas em quatro articulações do lactente, aludindo, cada uma, a uma das quatro partes do Universo, integradas ao eixo, o peito da Criança, no qual jaz o ideograma da onça pintada. A Criança Jaguar carrega, aqui, o símbolo do Sol, sendo divindade solar na melhor qualidade de um Apolo (outra Criança Divina), porque é tradicional e universal o símbolo do Sol conectando e medindo — ou criando — todo o Cosmos com seus raios, e o símbolo do Submundo, sendo divindade ctônica na melhor qualidade de um Dionísio (mais uma Criança Divina). Neste ícone da Criança Jaguar, abaixo do ideograma da Onça há outro, o da Cruz. As duas máscaras que estão no topo do esquema em Cruz do Corpo da Criança ostentam, uma, um Olho Aberto com uma faixa curativa e, outra, um Olho Aberto com pálpebra flamejante. As duas máscaras aos pés do Corpo são um Olho Fechado e a própria Cruz. Nota-se, portanto, como a Criança Jaguar está tanto no Alto quanto no Baixo e como seu Corpo se eleva dos Ínferos (Sono, Trevas e Morte), nos pés, e aos Céus (Consciência, Luz e Vida), nas mãos. O Olho Aberto Ferido é símbolo do sangue corrente, quente e fresco, e o Olho Aberto Flamejante é símbolo do Fogo Sagrado do sacrifício. Em oposição ao Fogo, o sangue representa a Água, que, corrente, é Água Viva, purificadora e curativa, ambos conectados na ideia do Atl-Tlachinolli — nahuatl para “Fogo da Água”, o mesmo que “Sangue Ardente”. O complexo “Fogo da Água” implica na perspectiva do sacrifício cruento e abrasado como motivo de regeneração cósmica e de saúde da humanidade — ligado às máscaras inferiores, tem-se o fechamento do ciclo regenerativo do Mundo. Dionísio, na figura de Zagreu, conserva a qualidade sacrificial divisada aqui; Balder, o “Apolo” germânico, é uma divindade solar que o preserva; em Apolo a reconhecemos indiretamente em seu combate contra a Grande Serpente Píton, símbolo do Inferno, habitante da caverna de Delfos; Quetzalcoatl é ele mesmo simbolizado pela Serpente Emplumada.

Um outro ícone olmeca mostra um rosto humano com um olho fechado — selado pela Cruz — e outro aberto — com uma forma circular ao centro -, reforçando o motivo dualista acima apresentado. As formas esculturais olmecas do “homem contorcionista” — ele comumente tem os pés encostando na cabeça, perfazendo um anel urobórico -, encontradas em sepulturas, fazem alusão direta ao ciclo da Vida, da Morte e do Renascimento. Em Chiapas, o conhecido Mural das Quatro Idades ostenta um motivo de pétalas circulares contornando a Cruz, do centro da qual emerge o deus da Morte — ele carrega na mão uma cabeça humana. No Peru, o ser mítico chamado “decapitador” ostenta características felinas, lembrando o jaguar, do Submundo. A estatuária ameríndia, quando apresenta figuras humanas, em diversas ocasiões as mostra de braços cruzados, na forma da Cruz — na escultura mexicana posterior, esse sinal osiriano é replicado no deus da Morte. Entre os olmecas, tal postura é aparente em outras posições do “homem contorcionista”, que pode ser visto, ademais, de cócoras, sentado ou em postura fetal, invariavelmente com traços muito infantilizados, emulando bebês ou crianças pequenas, e habitualmente olhando para o Céu — considere ele era depositado em criptas mortuárias. Se os braços cruzados, o “X”, são marcadores da Morte, e se a Criança olmeca chega a aparecer ostentando o “X”, suas características infantis e sua obesidade representam a Vida em gérmen, enquanto Totalidade ou virtualidade genesíaca — isto é: a Vida em seu estado primitivo, latente, prenhe de todas as possibilidades e diversidades. A Criança Jaguar, um tipo de Adão Kadmon ou Homem Universal, igualmente presente no sistema mítico e ritual dos árias — em seguida, dos hindus -, por conseguinte, é Morte e Vida, Princípio e Fim. Deitando as pernas no reino dos Mortos, postava a cabeça no Firmamento para garantir, desde a sepultura, a continuidade da vida humana na Terra.

… postava a cabeça no Firmamento para garantir, desde a sepultura, a continuidade da vida humana na Terra.

No Sonho de Nabucodonosor, a Pedra Celeste, que vem da Eternidade, que é o Fim do Mundo e o Princípio da Nova Criação e que é a própria Montanha, atingido, enfim, as dimensões inteiras do Cosmos, carrega consigo os signos do Alto e do Baixo, porque Desce antes de se Elevar. Sendo feita de pedra bruta, não talhada, guarda o sentido primitivo das rochas naturais: não esculpidas pela mão humana e não estabilizadas em formas racionais e fixas, mas mantidas em seu estado original, virgem e disforme, são como cápsulas da potência criadora, cosmogônica, receptáculos intocados da vitalidade do Princípio, donde matrizes energéticas para a restauração do Mundo — funções que cumpriram, em diversas culturas, sob a configuração de menires, de pilares, de ônfalos e de marcos. Uma pedra bruta será análoga, de certa maneira, ao Ovo Cósmico, carregando dentro de si toda a força e toda a virtualidade genesíaca do Começo, servindo de semente dos Recomeços e de Umbigo da Terra. A Pedra Celeste, Pedra Bruta, alude à Criança Divina também neste ponto, pois toda a Montanha Cósmica, de onde ela se desprendeu, está contida nela e é desdobrada dela, como uma Nova Criação.

A diferença notável entre o que estudamos dos pagãos e daquilo que conhecemos em Daniel, convém dizê-lo por razão de consciência e por motivo de piedade, é que o oráculo do profeta bíblico, como bem o notou Fulcanelli, não coaduna com a ideia gentílica do Tempo Cíclico, das renovações periódicas do Mundo e com o Eterno Retorno do Mito agrícola, mas, escatológica por excelência, vê uma sucessão linear de povos e um sentido inflexível e unívoco para os tempos: eles culminam no Fim, após o qual não há regeneração ou recapitulação do que se viu, mas a própria Eternidade, o cenário vazio e inerte do Monte Santo de Deus.

Texto de minha autoria (como os demais deste canal) originalmente publicado em meu perfil pessoal do facebook em 9 de outubro de 2024.

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Natanael Pedro Castoldi
Natanael Pedro Castoldi

Written by Natanael Pedro Castoldi

Psicoterapeuta com formação em teologia básica e leituras em história das religiões e simbolismo. Casado com Gabrielle Castoldi.

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