A Palavra Encarnada e o Símbolo Eucarístico

Do consumo do Corpo de Cristo para o crescimento d’Ele em mim

Natanael Pedro Castoldi
15 min readNov 3, 2023
Albrecht Dürer — São João Devorando o Livro

A tragédia do secularismo não reside na negação completa do legado cristão, mas no enlouquecimento dessa herança. Segundo C. Jung, nossa época, que é o fim do Éon cristão, está sobrecarregada daquilo que definiu o próprio cerne ou o fundamento da civilização cristã: do Logos. Contudo, o Logos cristão, que é o Cristo, desde o princípio se associou, nalguma medida, ao Logos platônico e estoico, e tensionou com ele no mesmo sentido do conflito entre o éthos do javista e o éthos homérico, bem estabelecido por H. Bloom, porque Jesus é Palavra Encarnada segundo o espírito de YHWH e menos segundo a Razão gentílica, o que O faz suprarracional e rebelde, portando em Si paradoxos que se devem assumir revelacionalmente, mais do que, ao fim e ao cabo, filosoficamente, porque são símbolos sagrados, não exatamente proposições lógicas. A Revelação, deve-se saber, se impõe à Filosofia e a governa, absorvendo-a sob si.

Esse motivo de escândalo no Logos, ou na Palavra, conforme a assimilação ocidental de tipo judaico-cristã, chegou ao clímax no início da Era Moderna, com o desvio cartesiano, o gérmen da aniquilação do Intelecto enquanto ‘nous’ e ocasião da decapitação da Razão, que se perdeu do Absoluto e da Transcendência. Como, todavia, o Ocidente não pôde deixar de lançar mão da própria alma e expurgar a Carne para fora de si, a “exorcizou” verticalmente, nos seus recônditos viscerais e na cova do esquecimento, conservando no espectro diurno uma aparência de Palavra, a Palavra desencarnada. Não havendo cultura sem culto, porém, a Carne “deslogogizada”, não pensável, passou a atuar como potência sombria, subterrânea, ínfera e caotizante, vertendo em idolatria, no ímpeto substancializador ou personificador de abstrações, sem ser percebida, porque afásica, apesar de sentida como compulsão. Sintomas, pois, de uma desordem neurótica na cultura, incapaz de pensar fora de suas categorias lúcidas e, por esse motivo, vítima dos assaltos do impensável — essa prisão na Palavra desencarnada é devida à dissociação interna da psique coletiva, fundada na desordem geral da exaustão dos motivos civilizacionais do Éon cristão e “esclarecida” por pensadores neuróticos, como Descartes.

… a Palavra desencarnada não passa de uma casca, retendo atrás de si inclinações primevas implacáveis…

O mais surpreendente é que a prisão na Palavra desencarnada é, na realidade, um confinamento nos desmandos da Carne deslogogizada, atuante como leito ctônico por debaixo da crosta apolínea da Cidade e subvertendo ou desviando, via paixões titânicas, todos os usos da Palavra “Pura” para finalidades religiosas incontornáveis — de fato, a Palavra desencarnada não passa de uma casca, retendo atrás de si inclinações primevas implacáveis, que se disfarçam de seu contrário para poderem se saciar, e cujas expressões mais notáveis podem ser definidas como barbárie e filistinismo, com este especialmente cínico, já que faz uso de todos os meios olimpianos da cultura para promover primitivismo e bestialidade, destruindo a cultura mesma. Note que exigências inflexíveis, quando não solvidas durante o dia, atacam à noite, e emergem como doença.

Como um rio cársico, a Carne deslogogizada transparece em repentes barbáricos e filistinos, para rapidamente desaparecer, retornando aos abismos e às sombras. O Logos desencarnado, que dá a forma visível e burocrática da vida social, conserva suas abstrações verbais e convencionais altamente apelativas, como Sociedade e Estado, que, palavras atomizadas e perdidas de sua referência ontológica, vão se solidificando como verdadeiras entidades, quase personificações panteônicas, ou “rudimentos do Mundo”. A Sociedade se torna Natureza, fundamento ético supremo e máter ou geratriz da realidade, cabendo ao Estado o papel expiatório e justificador da Sociedade, como dispensador de todos os bens, sendo ele mesmo legitimado pela Sociedade. E se palavras e convenções tais assumem artificialmente substâncias que não lhes deveriam caber, é porque estão sendo animadas (no sentido de Anima) por motivos ínfernos da Carne expurgada. Então, notemos bem, a revolta prometeica dos modernos, achando-se capaz de exorcizar a alma (Anima) do Ocidente, pelo que desprezou o Logos cristão em favor da contraparte clássica (que perverteu), na medida em que intentou dar império à Palavra “Pura”, ou à deusa Razão, acabou no acorrentamento de Prometeu às rochas do Abismo: a Carne, deslogogizada, escorreu para os fundamentos do Mundo e, de lá, ordenou tectonicamente todos os discursos, possuindo Sociedade e Estado com sua ‘energeia’, donde substitutos ilegítimos do Divino desprezado, o verdadeiro Auctor. Para a sua própria desgraça.

Desde o momento em que a ‘palavra’, através de uma educação secular, adquire validade universal, ela rompe sua ligação originária com a pessoa divina. Ao romper essa ligação, surge uma Igreja extremamente personificada e — last but not least — um Estado igualmente personificado; a fé na ‘palavra’ se transforma em crendice e a própria palavra em slogan informal, capaz de todo tipo de impostura. Com a crendice, com as propagandas e anúncios, o cidadão satura os ouvidos, assume compromissos e negócios políticos, enquanto a mentira alcança proporções jamais vistas. — C. Jung, Presente e Futuro. p. 49

Como supracitado, uma época como a nossa sofre de uma severa dissociação psíquica, e, tendo rompido com o paradoxo inaugural, a Palavra Encarnada, para unilateralizar a Palavra “Pura”, aboliu a Carne para o território da Sombra, donde a relativização de toda a materialidade ou substância ontológica. Contudo, tal qual todo o neurótico, conserva um desconforto, a angústia profunda do embusteiro, uma desconfiança geral a respeito de sua legitimidade, ou da legitimidade de sua demanda, com uma percepção sutil e terrível daquilo que soterrou abaixo de seus pés, e que sublima pelas fendas da terra com cheiro de enxofre e ímpeto selvagem — percepção essa da qual fugirá neuroticamente, se agarrando a cada fragmento ou resquício “justificador”, radicalizando e hiperbolizando até os menores farelos que se prestem à distorção e à mentira. Assim, numa verdadeira tragédia de paralaxes, vai enlouquecendo cada vez mais, ao ponto da negação paranoica da sua própria contradição e da mais óbvia realidade, assim como da racionalização de seu comportamento hipócrita — porque seu delírio é impraticável.

O mais tenebroso dessa circunstância é a nossa época, fim de Éon, precisar conservar-se fugindo de sua própria sombra. Ainda que reconheça a sua loucura abstracionista e queira tentar encarar o paradoxo da Encarnação da Palavra, não saberá o que fazer com ele, como lidar com seu vulto, como sobreviver aos seus imperativos escatológicos. Enlouquece na Palavra pulverizada, possuída pela Carne ínfera, mas enlouquecerá ainda mais se for constrangida à visão direta do Encarnado — ser-lhe-á como um sol terrível, cuja luz fulminante é o mesmo que trevas. A Carne é-lhe abissal e só a tem como negativo lógico, ou Nada. Digo-o porque a vigente sociedade ocidental perdeu quase que completamente os instrumentos propícios para a apreensão do Mistério da Encarnação, que demanda olhos espirituais, visão de espírito, ou ‘nous’, e uma penetração sapiencial para dentro do Símbolo — que é a própria definição de Mistério, uma vez que protege a Verdade dos não iniciados, ou não instruídos.

… conquanto [certos cristãos] se afirmem dogmáticos, realizam sempre o oposto do que pretendem — a saber: destroem a Fé e desabrigam Sagrado.

O que será, para o ocidental contemporâneo, se deparar seriamente com o Mistério da Encarnação do Logos, senão escândalo? Porque para ele tudo é discurso, tudo é narrativa, tudo é “cosmovisão” em sentido de opção pressuposicional, e a matéria não é mais do que uma amálgama ou um magma fluído, um éter que se quer exterior e que se deve superar, substanciar ou informar verbal e volitivamente — noutros termos, precisa vê-la como passiva e inerte, quando ela, na realidade, uma vez desterrada, se infiltra em seu “mundo” ‘deamoniacamente’. Ele jaz possuído, oprimido por todas as paixões viscerais, e se arrasta, cheio de angústia, por terras áridas e por vazios desolados, mas segue se pensando razoável. O mesmo entre os cristãos, maior parte dos quais igualmente achatados em seus espíritos, o que quer dizer: também neuróticos. Porque similarmente quebrados no âmago, vendo tudo basicamente nos mesmos termos ou segundo o mesmo espírito dos ímpios, como Palavra desencarnada, e se aproximando do Cristo como a uma espécie de abstração ou slogam, um rótulo atrás do qual depositam o que quer que lhes interesse, certificando-se primeiro de que Ele tenha sido esvaziado de Sua natureza própria, que é o Divino. Por mais contraditório que pareça, são outros que não suportam o vulto da Encarnação do Logos — mesmo quando supremamente materialistas (e o materialismo é sempre um idealismo), aderindo a espécies de ebionismo e adocionismo (que salta para o docetismo), seguem incapazes de identificar, a um só tempo, o Logos e a Carne, e quanto mais se prendem à Palavra “Pura”, mais se perdem em compulsões telúricas, tornando-se idólatras, de modo que, conquanto se afirmem dogmáticos, realizam sempre o oposto do que pretendem — a saber: destroem a Fé e desabrigam Sagrado.

Os cristãos primitivos, dotados de imaginação simbólica e portadores de bons olhos espirituais, conservavam o paradoxo do Logos Encarnado como fundamento da Fé e da unidade do Corpo Místico de Cristo, assim como do próprio Cosmos. Não lhes passava pela cabeça a necessidade de fazer dominar o Logos gentílico sobre o Logos javista, o que quer dizer: a capacidade de suprimir o paradoxo em favor da imposição da Razão — ou seja, de aniquilar o Símbolo ao tentar explicá-lo e elucidá-lo filosoficamente. Isso pulverizaria a Carne, soterrando-a nos ínferos, em favor da Palavra desencarnada — por terem tentado fazer isso é que muitos cristãos dos primeiros séculos se tornaram heresiarcas.

Para os seguidores d’O Caminho, a Verdade espiritual, simbólica, revelacional, jazia impregnada de tanta legitimidade — ou mais — quanto a razão filosófica — se compreendia, afinal, que o principal instrumento do filósofo, a razão noética, ou o intelecto, era também o recurso pelo qual o cristão, na Graça e espiritualmente reabilitado pelo Espírito Santo, poderia contemplar o Absoluto e o Transcendente através dos símbolos, sobretudo aqueles transcritos na Escritura. A começar pelo apóstolo Pedro e na Sabedoria, puderam reconhecer Deus Filho em Jesus, e lhes foi dado a saber, por iluminação, da Encarnação do Divino — a Palavra Eterna, por meio da qual o Pai criou tudo quanto existe; arquiteta da Criação e seu fundamento, porque a Criação se ergue do Santo Sangue do Cordeiro de Deus, conhecido desde antes do Um Dia (1 Pe 1:19–20), e reflexo ou sombra do Seu Corpo Glorioso é toda a realidade (Cl 2:17).

O Símbolo Eucarístico, que conserva em si esse Mistério, é seu guardador. A Palavra se fez Carne e habitou entre os homens (Jo 1:14), e, Palavra Encarnada, foi partida na Cruz, tragada pela Morte e sepultada no Abismo. Como grão de trigo, desfez-se e despedaçou-se, à imagem do Pão Santo, para que, de um, os muitos pudessem ser salvos, uma vez que, do despedaçamento do Corpo, multiplicado em fragmentos, uma multidão faminta pode se saciar, porque há pão para todos os comensais.

Jaz no Símbolo Eucarístico o consumo coletivo da Palavra Encarnada, do Pão do Céu, do Cristo, que é todo o Mistério de Deus, oculto na Lei e nos Profetas e a inteireza da Verdade. Consome-se o pedaço do pão partido como quem come a Palavra Encarnada, que se lhe torna disponível através da Morte Salvífica, a Morte Exemplar da qual todos os cristãos se fazem coparticipantes, morrendo para suas próprias carnes no ato do Batismo para, neste mesmo ato, afirmarem a expectativa da escatológica ressurreição em corpo glorioso, feito de matéria celestial, tal como o já revelado Corpo Espiritual de Jesus Ressurreto, as primícias. O apego à promessa da ressurreição em corpo pneumático é sempre reafirmado no partilhar comunal e cúltico do Pão e do Vinho, do Corpo e do Sangue, e é antecipado profeticamente na Igreja, que é Corpo Místico de Cristo, atualizado na comensalidade dos Símbolos Eucarísticos — num só espírito, todos os crente reafirmam a morte para si mesmos na Morte de Cristo e a identidade de Povo de Deus e de princípio da Nova Criação no Corpo do Ressurreto.

A Palavra Encarnada era uma realidade experiencial, mística, para os antigos cristãos, concreta na medida em que dela se podia participar efetivamente…

Nota-se aqui algo fundamental a respeito do homem antigo: pelo Sagrado, conservava contato ritual, que quer dizer vital, com Verdades Eternas, atualizando-as em si mesmo e na imanência através da participação em atos litúrgicos, desdobrados desde dentro dos símbolos. A Palavra Encarnada era uma realidade experiencial, mística, para os antigos cristãos, concreta na medida em que dela se podia participar efetivamente, e essa atualização da Palavra Encarnada dentro do Mundo valia, para fins de certeza, tanto ou mais do que demonstrações lógicas — porque, ao fim e ao cabo, toda a doutrina se presta e tem por finalidade a materialização na vida do Corpo, da Igreja, como tipo ou antecipação -por espelho- da Nova Criação, assim como toda a demonstração lógica deve se referir a realidades ou verdades substanciais. Há, como o é na escatologia, uma cronologia de eventos futuros, mas também há, como no Mito, a cíclica vivência litúrgica, por participação e antecipação, dos motivos eternos subjacentes à Criação e à Nova Criação.

Uma ilustração notável para esse princípio, e que muito me chama a atenção, está em Apocalipse 10:10, que apresenta o apóstolo João, na visitação visionária ao Paraíso Celestial, sendo impelido a consumir por inteiro um pequeno livro, que era doce ao paladar, mas amargo ao estômago. O pequeno livro estava nas mãos de um magnífico anjo, descrito de maneira similar à descrição de Cristo em Apocalipse 1, repleto de motivos cósmicos, sobretudo celestes, e, no caso do capítulo 10, de dimensões propriamente cósmicas, que muito lembram as imagens do Adão Kadmon — este se ergueu do Mar, como reflexo do semblante de Deus, e aquele desceu do Céu ao Mar, mas ambos atingiam alturas que iam da Terra aos Céus. Claramente, todavia, o anjo de Apocalipse 10 não é Cristo, porque não atribui a si mesmo a qualidade divina (v. 5–7), embora conserve símbolos crísticos, por assim dizer. Dentre os quais, o Livro deve ser um dos símbolos crísticos mais importantes, associado ao iminente fim de todas as coisas, que é o cumprimento do “Mistério de Deus”.

Note que o Livrinho inicialmente aparece aberto. Sua exposição na mão do anjo foi acompanhada com este bradando, em sete vozes leoninas de trovões, oráculos tremendos, aos quais João fora impedido de registrar, devendo, antes, selá-los, como aos Sete Selos. Os Sete Trovões, pontuo, são sete visitações divinas, tais como os Selos, as Trombetas e as Taças, mas o que eles dizem não está, neste capítulo, pronto para ser transmitido aos homens. Todavia, como o próprio anjo diz em seguida, tudo será consumado “sem demora”, e o Mistério de Deus, dado primeiro e obscuramente aos profetas, será cabalmente realizado na voz do Sétimo Anjo (não ignoremos o significado simbólico do Sete), que é o ressoar da Sétima Trombeta, conhecido no capítulo 11: 15–19:

E o sétimo anjo tocou a sua trombeta, e houve no céu grandes vozes, que diziam: Os reinos do mundo vieram a ser de nosso Senhor e do seu Cristo, e ele reinará para todo o sempre.
E os vinte e quatro anciãos, que estão assentados em seus tronos diante de Deus, prostraram-se sobre seus rostos e adoraram a Deus, dizendo: Graças te damos, Senhor Deus Todo-Poderoso, que és, e que eras, e que hás de vir, que tomaste o teu grande poder, e reinaste.
E iraram-se as nações, e veio a tua ira, e o tempo dos mortos, para que sejam julgados, e o tempo de dares o galardão aos profetas, teus servos, e aos santos, e aos que temem o teu nome, a pequenos e a grandes, e o tempo de destruíres os que destroem a terra.
E abriu-se no céu o templo de Deus, e a arca da sua aliança foi vista no seu templo; e houve relâmpagos, e vozes, e trovões, e terremotos e grande saraiva.

Nesse ínterim, entre o capítulo 10 e 11, desde as palavras do anjo colossal até o toque da Sétima Trombeta, uma série de eventos se abatem sobre a Terra, todos envolvendo a atuação das Duas Testemunhas do Senhor em Jerusalém — tradições divergem se são elas Enoque e Elias ou Moisés e Elias. Talvez sejam esses os atos, não especificados e nem detalhados por João, aqueles apropriados aos Sete Trovões, que necessariamente se referem a eventos anteriores à Sétima Trombeta, porque nela, tal como no Sétimo Selo, na Sétima Taça e no Sétimo Trovão (deduz-se), tudo estará consumado. Quando João come o Livrinho entre a Sexta e a Sétima Trombetas, se delicia na Palavra, que destila como mel dos favos, mas, como foi com Ezequiel, o juízo de Deus, que nela está contido, lhe pesa.

O Fim da Era e a consumação de todas as coisas, reforço, são redesenhados em diferentes símbolos nos três ciclos de sete atos, os Selos, as Trombetas e as Taças, com um quarto ciclo, o Quatro Ocultado, de Trovões. Tem-se, portanto, uma repetição dos eventos últimos do Tempo e uma repetição de términos com o resplendor do Eschatos. Vimos noutra ocasião como os Quatro Cavaleiros do Apocalipse são todos aspectos do Juízo de Deus e, unificados na totalidade quádrupla, o símbolo do Juízo Absoluto, ou total, previsto no Primeiro Cavaleiro, o Branco, que é reencontrado como o Cristo Terrível de Apocalipse 19. Isso põe o Livro dos Sete Selos, completíssimo, escrito por dentro e por fora (um opistógrafo — a Totalidade da Revelação), como sendo um símbolo da Palavra, do Verbo Divino, o Alfa e o Ômega (que é o Princípio e o Fim), um símbolo do Cristo, o Mistério de Deus, que venceu e é digno de abrir o Livro — abrir no sentido exato de realizar ou tornar efetivo (porque a Palavra de Deus, quando dita, é também feita). Nesse caso, serão igualmente as Trombetas e as Taças manifestações do Juízo Absoluto do Pai por meio de Cristo e as mesmas expressões do Mistério de Deus ocultado no Cordeiro, pelo qual tudo o que foi feito se fez e em quem tudo já está consumado.

Pensarmos as coisas nesses termos nos induz à visão do Livrinho como uma repetição, no contexto das Trombetas, do Livro dos Selos, escrito por dentro e por fora, e, consumível, como um símbolo da Palavra Encarnada ou do Pão Eucarístico. O próprio evangelista João, permitam-me especular (no risco do devaneio), é quem nos traz uma imagem similar, dos atos de Cristo como inumeráveis ao ponto de completarem a inteireza da face da Terra, o que pode carregar consigo, por detrás da opção estilística (para dizer que Jesus realizou uma miríade de prodígios não descritos no Evangelho), algo desse Mistério apocalíptico, imediatamente reconhecível pelos iniciados que estivessem a ler o Quarto Evangelho:

Jesus realizou ainda muitas outras maravilhas. Se todas elas fossem escritas uma por uma, acredito eu que nem mesmo o mundo inteiro seria capaz de conter os livros que se escreveriam. — 21:25

Cristo, o Verdadeiro Pão do Céu, é Pão da Vida e “toda a Palavra que procede da boca de Deus” (Mt 4:4). Ele é o Caminho, a Verdade, a Ressurreição e a Vida, e quem a Ele vai não terá fome, porque Ele, a Palavra, é alimento; e não terá sede, porque Ele é Água Viva, que jorra para a Vida Eterna. Ele é a Videira Verdadeira, nós, Seus ramos. Comer o Pão Santo, no contexto cúltico, é comer a Palavra Encarnada, é comer o Livro, é absorver, em símbolo e como sinal, a Vida de Cristo, assimilando-a na própria vida, e ir fazendo com que o Corpo Partido do Senhor vá crescendo em nós, enquanto a nossa própria carne morre e diminui. Dá-se aqui, em sentido místico, uma progressiva transubstanciação: de meu próprio corpo da morte, fico com cada vez menos, para que, do corpo espiritual de Cristo, que é o corpo da ressurreição que me espera, eu vá assimilando cada vez mais. Agora isso é por participação e antecipação, como tipo ou sombra do que virá, para um dia sê-lo de fato e por inteiro.

O que vencer será vestido de vestes brancas, e de maneira nenhuma riscarei o seu nome do Livro da Vida; e confessarei o seu nome diante de meu Pai e diante dos seus anjos. — Ap 3:5

Algo do aspecto iniciático desse conhecimento, resguardado nos símbolos, aparece indiretamente no vocabulário paulino, assim como em Hebreus, quando as profundezas do Mistério de Deus em Cristo são descritas como “carne” — uma carne que não pode ser servida aos neófitos e nem aos inconstantes, mas apenas aos perfeitos (1 Co 2:6). Só os adultos estão prontos para suportar o peso da carne e o amargor da Palavra inteira, devendo as crianças permanecerem no leite. A Palavra de Deus é amarga porque “é viva e eficaz, e mais afiada que qualquer espada de dois gumes; ela penetra até o ponto de dividir alma e espírito, juntas e medulas, e julga os pensamentos e intenções do coração” (Hb 4:12), e é sombra de juízo para si e para o Mundo inteiro. Ela, porém, é igualmente doce, porque todo o Juízo redunda em Salvação e Nova Vida para os filhos de Deus, que são os que sinalizaram a morte da própria carne na Morte de Cristo, no Batismo, e que se conservam na expectativa da Sua Vinda, comungando do Símbolo Eucarístico e, “mendigos pelo Espírito” (Mateus 5:3), progressivamente menores para si mesmos, sempre famintos por mais da Carne de Cristo, que é Palavra Encarnada.

Na verdade, na verdade vos digo que, se o grão de trigo, caindo na terra, não morrer, fica ele só; mas se morrer, dá muito fruto.
Quem ama a sua vida perdê-la-á, e quem neste mundo odeia a sua vida, guardá-la-á para a vida eterna. Se alguém me serve, siga-me, e onde eu estiver, ali estará também o meu servo. E, se alguém me servir, meu Pai o honrará. — Jo 12:24–26

Texto de minha autoria (como os demais deste canal) originalmente publicado em meu perfil pessoal do facebook em 3 de Novembro de 2023.

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Natanael Pedro Castoldi
Natanael Pedro Castoldi

Written by Natanael Pedro Castoldi

Psicoterapeuta com formação em teologia básica e leituras em história das religiões e simbolismo. Casado com Gabrielle Castoldi.

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