Filosofia Antiga não é Falsa Doutrina
Leituras na doutrina do apóstolo Paulo
Continua chamando-me a atenção o tempo de “cerca de dois anos” do ensino do apóstolo Paulo no ginásio de um “certo Tirano”. É importante notar que esse ginásio de Tirano, porque chamado “teatro” em Atos 19:29, seguia todos os moldes das antigas escolas gregas, uma vez que possuía um espaço para exercícios físicos e ambientes de ensino. O Apóstolo, que se sustentava com a fabricação de tendas, conseguiu alugar uma sala no ginásio de Tirano provavelmente porque a sua doutrina era encarada como uma nova escola filosófica, que é a mesma percepção que os filósofos atenienses tiveram do ensino paulino, donde o convocação para que a apresentasse no Areópago — esse costume existia entre os gregos desde antes de Pitágoras, porque o grande filósofo, assim que chegou em Crotona com sua “doutrina estranha”, foi convocado à sua ministração aos sábios da cidade, ganhando o direito a uma colina próxima para a fundação de sua escola. Deve-se considerar que o Apóstolo, tendo arregimentado um certo grupo de alunos — dentre os quais os Doze de João -, atuou como tutor particular, para quem o espaço público, ou a Ágora, não estava aberto — o mesmo parece ter sido o caso em Atenas. É de se conjecturar que Paulo, como professor informal, aceitou honorários espontâneos de seus alunos, já que o espaço era alugado. À doutrina pregada pelo Apóstolo, os gentios chamavam de O Caminho.
Podemos ter uma ideia a respeito d’O Caminho, em seu espectro especulativo, em alguns trechos de Atos e das epístolas. Todavia, não querendo elaborar exaustivamente esse ponto, que já está destrinchado no meu estudo A Perda da Encarnação, vou me ater a apenas algumas questões referentes à pessoa de Cristo. O lugar central, evidentemente, é Atenas, em Atos 17. É notável que o Apóstolo foi para lá levado, fugido de Beréia, e é por isso que não encontrarmos muito mais a respeito de Atenas na obra missionária de Paulo, que estava fora da rota, donde o status especial da visita paulina à velha capital grega — visita que Paulo jamais desperdiçaria. Roma era o epicentro do Império, o lócus último do poder político, e chegar à Cidade Eterna era o grande propósito do Apóstolo, mas Atenas era o símbolo máximo do legado gentílico, o cerne autoritativo da instituição filosófica, e disputar com os filósofos atenienses era a grande glória de toda a nova doutrina filosófica. A Atenas do tempo de Paulo já era decadente, como ele próprio nota (v. 16), mas mesmo muito tempo depois diversos rabinos entendiam ser persuasivo contar histórias sobre como rabis antigos derrotaram os filósofos atenienses — muitos dos contos judaicos catalogados por Bin Gorion apresentam disputas entre sábios judeus e sábios pagãos, mas há um conto em especial que me chamou a atenção, porque apresenta uma hipotética carta de Aristóteles se curvando a Salomão e à Sabedoria no final da vida. Dessa maneira, levar o Evangelho à guarda pretoriana do Imperador (Fl 1:13) e realizar milagres e exorcismos na cidade do glorioso templo de Diana, na Éfeso símbolo de todo o paganismo (Atos 19:27), era como derrotar os filósofos em Atenas. E foi isso que Paulo empreendeu assim que chegou lá, comovido com a dimensão da idolatria daquele lugar: na Ágora, debatia com os judeus e os religiosos, e logo alvoroçou os epicureus e os estóicos. Os epicureus eram doutores das classes mais abastadas e educadas, pregavam uma espécie de deísmo e sensualismo, enquanto os estóicos, mais próximos da plebe, populares entre os militares e rivais dos epicureus, sustentavam uma doutrina do Logos enquanto Razão Universal e cerne de uma vida ética sobremodo rígida. Foram epicureus e estóicos os que levaram Paulo ao Areópago, escandalizados com a doutrina da Ressurreição. No Areópago, vemos que a defesa de Paulo se dirige principalmente aos estóicos, com os quais o Apóstolo encontrava afinidades filosóficas, que são muito evidentes nos diversos termos técnicos que aplica a’O Caminho noutros lugares e como está claro na ênfase de todo o discurso (v. 22–29).
Paulo é posto como um “Segundo Sócrates”, ele vem de fato como um refundador da Filosofia, retificada ou completada em Cristo Jesus
Há uma analogia muito interessante da captura de Paulo, justificada na acusação de ser ele um anunciador de “deuses estranhos”, com a acusação de impiedade desferida contra Sócrates (v. 17, 19–20), inteligível para alguns os leitores gregos de Lucas, principalmente porque Sócrates, o filósofo ideal, tinha sido igualmente conduzido ao Areópago. A mesma acusação que os filósofos desferiram a Paulo levou uma sacerdotisa ateniense, muitos séculos antes, ao apedrejamento. Daí a euforia dos epicureus e estóicos, que chamam a Paulo de “tagarela”, que quer dizer “desmiolado”, equivocados eles mesmos em seu julgamento, porque não perceberam que Paulo não pregava “deuses”, mas Jesus Cristo, o Ressurreto, o que o Apóstolo muito enfatizou em sua defesa — ele pregava um único Deus, o Deus Desconhecido. Segundo Keener (Comentário Bíblico Atos), as aproximações de Lucas entre Paulo e Sócrates devem ser intencionais, corroborando o supracitado lugar de Atenas na obra paulina junto aos gentios: chegar à guarda pessoal do Imperador em Roma, desafiar o magnânimo Templo de Diana em Éfeso, superar os filósofos gregos em Atenas. E se Paulo é posto como um “Segundo Sócrates”, ele vem de fato como um refundador da Filosofia, retificada ou completada em Cristo Jesus.
Entre os religiosos gregos mais tradicionais, os filósofos não eram dignos de crédito, porque considerados como que ímpios, já que contestavam muitas das velhas tradições, entendo-as como compatíveis apenas às demandas do populacho, mas não às dos esclarecidos. Isso torna convincente ao estoicismo a apresentação d’O Caminho enquanto doutrina do Deus Desconhecido — Criador de todas as coisas, único verdadeiro Deus, maior do que templos e imagens esculturais, artifícios do homem, a ser encontrado por aqueles que, libertos da ignorância, possam achá-Lo. Diante do Areópago, o conselho que então se encontrava na Ágora, Paulo se colocou como revisor e completador da Filosofia, com termos estóicos e reciclando muitos argumentos de judeus helenistas predecessores — tanto judeus quanto estóicos, por exemplo, concordavam que Deus “não necessita de nada” e em termos que são os mesmos que Paulo usa no v. 24; ambos concordavam que Deus era o Criador, estabelecedor dos limites da Terra e regulador do Mundo (v. 25), embora os estóicos cressem no Tempo Cíclico; muitos gregos e judeus da diáspora, assim como certos escritores cristãos do Segundo Século, atribuíam a Deus o título de Pai do Mundo (v. 28). Os filósofos, todavia, não concordavam com o pensamento escatológico judaico, muito menos com a doutrina da Ressurreição do Corpo. Os epicuristas, pois, negavam a imortalidade da alma, que morria e apodrecia junto do corpo; outros, influenciados pelo platonismo, dentre os quais os estóicos, entendiam ser a alma imortal e eterna, retornando ao Alto, da mesma maneira que dele desceu, quando da morte do corpo. A Ressurreição do Corpo se aproximava mais do judaísmo farisaico, que Paulo aprendera com Gamaliel, mas nem ele se alinhava de todo à doutrina de Paulo, porque compreendia que o corpo ressuscitaria a partir de algum fragmento remanescente, que sobrevivera ao apodrecimento, e, nalguns casos, debatia se o ressurreto voltaria com o corpo em circunstâncias análogas ao modo de sua morte — não o pensavam enquanto Corpo Glorioso, que Paulo conhecera através da cristofania na qual emergiu quando subia para Damasco.
Um dos fundamentos da defesa paulina da Ressurreição do Corpo lança seu alicerce retórico nas declarações de “alguns poetas” dos gregos, dentro do espírito de Epimênides (ligado à lenda ateniense do Deus Desconhecido), a quem Paulo também cita em Tito 1:12. Atos 17:28 diz: “Porque nele vivemos, e nos movemos, e existimos”, e conclui, citando o poeta Arato: “Pois somos também sua geração”. Os dois usos faziam referência, num primeiro momento, ao monoteísmo cosmológico gentílico, que identificava o Único Deus a Zeus, de quem todas as demais divindades são aspectos, o que quer dizer que Paulo, até aqui, não estava “tagarelando”: o Deus Único, que os gentios cultos conheciam, é o mesmo Deus Desconhecido que o Apóstolo prega — mas esse aspecto “desconhecido” pelos gentios é aquele que Paulo está prestes a completar. Ora, se somos “geração sua”, ou obra de Deus, se, portanto, Deus é o Pai do Mundo e criador dos homens, “não havemos de cuidar que a divindade seja semelhante ao ouro, ou à prata, ou à pedra esculpida por artifício e imaginação dos homens” (v. 29). Como poderá, pois, o Criador do homem ser idêntico à imaginação ou à criação do homem? Pode o homem reproduzi-lo com exatidão em matéria amorfa e esculpida, ou nalgum construto mental? A única imagem adequada do Criador do homem é o próprio homem, porque o homem ganhou essa imagem de Deus, não foi ele quem a criou, e esse Deus não será semelhante a quaisquer criaturas que sejam inferiores ao próprio homem. Por isso, Ele não pode ser criado pela imaginação, mas assumido, inicialmente, por revelação natural, de maneira que não é ao homem que Ele se parece, mas é o homem que a Ele se parece. Nisso os filósofos estóicos e os platonistas também estavam de acordo, encarando essa imagem nos termos das faculdades humanas radicadas na parte mais elevada da alma, Nous, que é a forma substancial do corpo. Todavia, Paulo vai além: não é só em espírito que o homem é “geração de Deus”, mas também em corpo — a imagem de Deus no homem inclui o corpo ressurreto, que é o corpo da Ressurreição de Cristo, a própria Divindade em Encarnação. Significa, por conseguinte, que no Corpo Glorioso de Cristo há uma coincidência plena entre Potência e Ato, sendo a forma corporal um corpo espiritual, idêntico em todos os aspectos ao espírito — seria, pois, a revelação aos homens de sua Forma Ideal, tal como jaz eterna e arquetípica no Hyperuranion. Esse “acabamento” da antropologia grega está, contudo, embebido de motivos escatológicos judaicos, mas principalmente daquilo que Paulo apreendeu na Visão Celestial (Atos 16:19).
A exposição desse argumento tragicamente não pôde ser completada no Areópago, porque os sábios gregos impediram a sua conclusão — queriam apenas saber se Paulo realmente pregava a Ressurreição do Corpo e, sabendo-o, interromperam a sua continuidade. Mas alguns dos que estavam no conselho, todos evidentemente da elite ateniense, foram convencidos e creram, dentre os quais Dionísio, o Areopagita. Deve-se intuir que a doutrina de Paulo pôde ser concluída junto da comunidade de convertidos que se formou no Areópago, tal como ocorreu em Éfeso, na escola de Tirano, embora num tempo muito menor do que “cerca de dois anos”. Um aprofundamento da doutrina de Paulo, que está na base do ensino em Atenas, pode ser lido em 1 Coríntios 15 e repercute em Romanos 1:20–23:
“Porque as suas coisas invisíveis, desde a criação do mundo, tanto o seu eterno poder, como a sua divindade, se entendem, e claramente se vêem pelas coisas que estão criadas, para que eles fiquem inescusáveis; porquanto, tendo conhecido a Deus, não o glorificaram como Deus, nem lhe deram graças, antes em seus discursos se desvaneceram, e o seu coração insensato se obscureceu.
Dizendo-se sábios, tornaram-se loucos. E mudaram a glória do Deus incorruptível em semelhança da imagem de homem corruptível, e de aves, e de quadrúpedes, e de répteis.”
Em Colossenses 2 há uma outra delongada exposição da doutrina de Paulo, que confirma o ensino do “corpo espiritual” ou arquetípico: “Porque nele habita corporalmente toda a plenitude da divindade” (v. 9). Esse versículo conclui a orientação paulina aos cristãos de Colossos para que não se deixassem persuadir por “vãs filosofias”, pelas “tradições dos homens” e pelos “rudimentos do mundo”. Por meio do batismo, morrermos com a morte de Cristo e ressuscitamos no Seu Corpo, a Igreja, na Sua Ressurreição, com a promessa de que, sendo Ele as Primícias “dos que dormem” (1 Co 15:20), seremos também nós ressurretos à Sua semelhança (15:23). Com a Morte de Cristo, houve vitória sobre todos os principados e suas respectivas potestades, de maneira que todo o ascetismo gentílico, de matiz filosófico, toda a filosofia e tradição humanas, assim como todo o sistema ritual israelita não eram senão “sombra do que haveria de vir: a Realidade é Cristo” (v. 17). No espírito lucano, devemos considerar que na Cruz, em Cristo, toda a sabedoria humana, toda a construção especulativa do homem na busca do Deus Desconhecido, todo o ascetismo filosófico e toda a estrutura ritual judaica foram derrubados — o que quer dizer: despojados, pregados no Madeiro, e já não há mais “escrito de dívida” contra os Nascidos do Reino, e as coisas perecíveis do Mundo, hábitos e costumes “salvíficos”, já não têm valor redentivo algum, porque o Eschaton foi finalmente revelado, a Verdade, a Realidade, o fundamento da Criação, no Corpo Glorioso de Cristo, gérmen do Reino Escatológico da Imperecibilidade. Seus efeitos, que eram muito limitados, se restringiam ao “tempo da ignorância”, servindo na busca humana por religação com Deus e na conservação dessa expectativa, de modo que as tradições humanas e suas filosofias, assim como o sistema ritual israelita, cumpriram um papel legítimo até o ponto da revelação de seu objeto último, o Eschaton. O que significa, nada mais e nada menos, que Cristo é a consumação, a retificação e a finalização de toda a Filosofia, que só terá legitimidade após Ele se vier d’Ele, se assumi-Lo como Fundamento da Realidade. O que necessariamente significa, com todos os desvios da ignorância, que a Filosofia Pagã contém um quinhão de legitimidade e uma parte da Verdade, de maneira que ela não é o equivalente às “doutrinas de demônios”, que Paulo acusa em 1 Timóteo 4:1–3, que já são perversões sofísticas da Sã Doutrina e, por isso, Falsas Doutrinas — seriam inovações, artifícios retóricos, “fábulas engenhosamente inventadas” a partir da Verdade Revelada, com a finalidade de justificar intentos concupiscentes (o ascetismo filosófico é muito mais piedoso do que isso). Naturalmente, as Doutrinas de Demônios se servem de diversos elementos das “vãs filosofias” e das “tradições dos homens”, reciclando-os para a corroboração de desvios — por isso são heresias. Vemos elementos disso ao longo de toda a 1 Coríntios.
Além da motivação, que é sempre egoísta e materialista, as distinções entre a Doutrina de Demônios e a Filosofia Pagã devem aparecer na tendência dessacralizante da Sã Doutrina, quando a Revelação do Eschaton, da Realidade, que é Cristo, é relegada a um plano inferior e relativizada, distorcida e anulada para que caiba dentro de um sistema teológico / filosófico determinado, em geral altamente intrincado e persuasivo. Porque toda a Filosofia Pagã, hoje, deve se curvar ao Cabeça, o Cristo, assim como toda a Profecia Antiga culminou no seu Cabeça, o João Batista, e jamais submeter o Cabeça, o Cristo, aos seus próprios rudimentos e às suas limitadas imaginações ou especulações, gestadas no “tempo da ignorância”. Conclui-se, portanto, que todas as filosofias e teologias posteriores à Revelação em Cristo, se não consideram o Cristo como a Coroa da Filosofia e da Sabedoria dos homens, são como que Falsas Doutrinas ou Doutrinas de Demônios, sobretudo quando utilizadas para construir discurso cristão, porque acontecem já no Tempo da Igreja — são, por conseguinte, perversões da Verdade, uma vez por todas dada a conhecer entre os homens.
Texto de minha autoria (como os demais deste canal) originalmente publicado em meu perfil pessoal do facebook em 31 de julho de 2023.