As Termas de Roma

Diário de viagem #7

Natanael Pedro Castoldi
7 min readMay 2, 2024
Foto tirada pelo autor do presente texto no dia 20 de abril de 2024. As Termas de Trajano — um ninfeu.

arrebatado pela visão dos imensos portões da antiga Muralha Aureliana, porque chegamos em Roma pela colossal Porta Ardeatina — a partir da qual a Via Cristoforo Colombo se transforma na Vialle delle Terme di Caracalla -, perdi o fôlego quando divisei as Termas de Caracala apenas alguns segundos depois, à esquerda do sentido de quem sobe para o coração da Cidade Eterna. Pego desprevenido, só pude registrar esse trecho no fim da viagem, quando descíamos de Roma em retorno à Fiumicino, e fi-lo em vídeo. A Porta Ardeatina surpreendeu-me, mas Caracala foi, sem dúvida, o primeiro vislumbre do que nos aguardava de inesquecível em Roma. Mal sabia eu que encontraria termas que fazem par a ela ainda e logo no dia seguinte.

Chamadas também Termas Antoninas, Caracala foi a segunda maior casa de banho da Roma Antiga, construída entre 211 e 217 d.C., durante os reinados dos imperadores Sétimo Severo e Caracala. Caracala serviu de modelo arquitetônico para um outro edifício notável, as Termas de Diocleciano, sobre o qual falarei mais adiante. Localizada além das Muralhas Servianas e entre os montes Aventino e Celio, Caracala demandou cerca de duas mil toneladas de material por dia durante seis anos para ser concluída — a decoração interna, por sua vez, demorou até 235 d.C. para encontrar termo, enquanto a estrutura como um todo foi modificada e reformada até o governo de Constantino. Seguia o padrão de aquecimento convencional das termas romanas, centralizado no hipocausto: um sistema interno movido a carvão e lenha que espalha vapor fervente em uma tubulação oculta. Caracala perdeu uso na década de 530 d.C., quando o rei gótico Vitige cercou Roma e bloqueou o abastecimento de água da Cidade. Entre os séculos VI e VII, Caracala se tornou o local de sepultamento dos peregrinos moribundos que buscaram cuidados terapêuticos no xenodóquio da Igreja dos Santos Nereu e Aquileu, localizada ao lado.

No dia 20 de abril, após um passeio com meus pais pela encosta do Palatino, que fica junto da Via Sacra dos arcos triunfais de Constantino, Tito e Sétimo Severo, fomos eu e a Gabrielle à subida do Monte Ópio, um esporão sul do Esquilino. O propósito de estar naquele belo jardim era chegar perto da Domus Aurea, o antigo Palácio de Nero, que dá vista direta ao vale do Celio, onde estão o Coliseu e o Ludo Magno. Apenas algumas dezenas de metros do Coliseu e já estávamos longe da massa dos turistas, podendo submergir na paz silente dos bosques que ora ocupam o Ópio, outrora superpopulado e largamente ocupado por edificações públicas, e onde as aves de canto substituem os burburinhos das multidões de antanho. A Domus Aurea, como já sabia, não estava aberta e sequer era visível, e o motivo soubemos em seguida, porque o passeio pelo Parco del Colle Oppio e delle Terme di Traiano, pelo qual pretendíamos atalhar em nossa jornada até a Porta Alchemica, nos desvelou o que o nome do lugar deixa evidente (e que nos passara despercebido): as ruínas da maior casa de banho da Roma Imperial até a sua época, 104 d.C., chamada Termas de Trajano, uma sucessora digna das termas de Agripa, de Nero e de Tito.

Foto tirada pelo autor do presente texto no dia 20 de abril de 2024. As Termas de Trajano.

Conforme subíamos pelo Parco, mais e mais frações ciclópicas das ruínas das Termas despontavam ao lado dos caminhos e entre as árvores, indicando a vastidão soberba do edifício original. Projetada pelo famoso arquiteto romano Apolodoro de Damasco, sua construção teve afeito depois do incêndio do Palácio de Nero (que curioso!), o qual deu margem para Apolodoro terminar de derruir seus pavimentos superiores e fazer uso de parte de sua infraestrutura e de seus materiais. Localizado em uma área de edificações públicas que se espalha por cerca de 60 mil metros quadrados, contendo ainda o Domus e as termas de Tito, principalmente, a “nave” da estrutura ocupava uma área de 330 x 315 metros e o seu edifício central, pois, 190 x 212 metros. A altura máxima do complexo, tal como conservado atualmente, é de 48 metros. Na foto (do título) está registrada uma das êxedras das Termas, um ninfeu ou fonte de água.

Foto tirada pelo autor do presente texto no dia 20 de abril de 2024. As Termas de Trajano — o Portal.

Cruzado o portal nordeste das Termas, que está junto da êxedra nordeste, a mais bem preservada, subimos à Porta Mágica, no topo do Esquilino, passamos pela Porta Esquilina, seguimos para a Basílica de Santa Praxedes e, tendo sido supremamente impressionados na Basílica Papal de Santa Maria Maior, chegamos, rumando norte, à belíssima Piazza della Repubblica, de onde avistamos a quimérica arquitetura da Basílica Maria degli Angeli e dei Martiri. Seu aspecto exterior, conquanto robusto, é humilde e deixa patente se servir de ruínas antigas, de tijolo exposto: notei que se parecia muito com algo das Termas de Trajano. Magnetizados, deixamos de lado toda a exaustão do ocaso e fomos até ela. Seus interiores, maravilhosamente decorados, nos espantaram, dada a aparente contradição com aquilo que se viu externamente — tratava-se, evidentemente, de uma igreja de imensa importância, pois suntuosa e ricamente ornamentada. Ainda assim, seu aspecto conservava o tom lúgubre e cavernoso proposto pelo ambiente derredor. Não tardou para descobrirmos que estávamos em uma igreja estabelecida dentro das Termas de Diocleciano! Quão grande impressão causou-me a desafiadora imposição de uma magnânima igreja cristã dentro da casa de banho de um dos mais tenebrosos perseguidores de cristãos de todos os tempos! Que simbólico! Ali apreendi sintetizada e ao extremo qual a relação do cristianismo, enquanto religião tradicional, com o substrato pagão e gentílico latino — uma relação de tensão, de paradoxo, de desafio, de absorção e de redenção. Toda a cidade de Roma está marcada por essa simbiose, por essa assimilação orgânica (embora violenta) e por esse reaproveitamento autoafirmativo da fé cristã multissecular frente à herança cinzenta do milenário paganismo romano.

Foto tirada pelo autor do presente texto no dia 20 de abril de 2024. A Basílica — interior.

As Termas de Diocleciano foram construídas entre os anos 298 e 306 d.C., erguidas por Maximiano em homenagem ao co-imperador Diocleciano. Foram concluídas pelo pai de Constantino, Constâncio Cloro. Estão já num pico do Monte Viminal e serviam de banho às populações do Esquilino, do Viminal e do Quirinal. Junto dessas Termas estivera um templo dedicado ao deus Quirino, e ali desaguavam as águas trazidas pelo Água Márcia, um aqueduto do séc. II, e pelo Água Antoniniana, utilizado principalmente para suprir o Caracala. Sua área total é estimada em 130 mil metros quadrados, similar a Caracala, e seu bloco central media 280 x 160 metros, com 44.800 metros quadrados — mais do que o dobro do bloco central do Caracalla. Uma das singularidades desses banhos era a presença de piscinas de água gelada, além das tradicionais de água quente e de água morna, aquelas servindo após o banho fervente e os exercícios físicos. As Termas de Diocleciano também deixaram de ter uso quando dos cercos do rei ostrogodo Vitiges, supracitado.

Foto tirada pelo autor do presente texto no dia 20 de abril de 2024. As Termas de Diocleciano.

No séc. XVI, em 1561, o Papa Pio IV ordenou a construção da Basílica numa parte das Termas — posteriormente, em 1598, uma segunda igreja ocupou as dependências das Termas (San Bernardo alle Terme) e, atualmente, outra parte das Termas está em posse do Museo Nazionale Romano. O estabelecimento da Basílica nos banhos de Diocleciano em memória dos mártires se deve ao fato de que muitos cristãos escravizados foram ali martirizados, morrendo durante a sua construção e jazendo desde então numa sepultura coletiva na tribuna absidial. Além disso, conta-se que um monge siciliano teve, vinte anos antes, uma visão do arcanjo Uriel no meio das ruínas das Termas — seu nome era Antonio del Duca, um expoente da defesa da veneração formal aos Príncipes Angélicos. Isso serviu bem ao empreendimento da cristianização das Termas, que ocupavam uma posição central no Quirinal (aqui as fontes se batem [já vimos sobre o Viminal]) e ainda não haviam sofrido quaisquer interferências substanciais da parte da Igreja. Nesse empreendimento de cristianização, até mesmo Michelângelo teve participação — foi ele quem projetou a Basílica nas áreas do tepidário (piscinas mornas) e do frigidário (piscinas frias) das Termas.

A noite em Roma estava, contudo, apenas começando, e ainda era dia 20. O retorno para casa, no meio do caminho entre o Coliseu e a Arquibasílica de São João de Latrão, nos deu a conhecer o outro lado do sítio arqueológico do Fórum Romano, na sua terminação noroeste. Após a passagem pela medieval Torre delle Milizie, nos deparamos, de súbito e num sobressalto, com a elevadíssima Coluna de Trajano. Mas aqui começa já uma outra história.

Foto tirada pelo autor do presente texto no dia 20 de abril de 2024. A Torre.

Texto de minha autoria (como os demais deste canal) originalmente publicado em meu perfil pessoal do facebook em 2 de maio de 2024.

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Natanael Pedro Castoldi

Psicoterapeuta com formação em teologia básica e leituras em antropologia e crítica literária. Casado com Gabrielle Castoldi.