O Cárcere Mamertino
O dia 21 fora reservado para um longo passeio com meus pais por Roma, objetivando os pontos nodais da Loba Capitolina (um dos monumentos que mais desejava ver [mesmo sabendo ser bem pequeno]), do Panteão, da Fontana di Trevi e do Vaticano, com todas as surpresas e paradas que encontraríamos pelo caminho. Saímos de nosso apartamento por volta de meados da manhã e cruzamos o Coliseu pelas calçadas da avenida Piazza del Colosseo, indo até a Via dei Fori Imperiali, onde estão localizados os fóruns da Roma Imperial, com o destino do Monte Capitolino. Virando à esquerda na altura das ruínas do templo da Vênus Genetrix, pertencente ao complexo do Fórum de César, estávamos na Via di S. Pietro in Carcere, pela qual andamos até a viela Civus Argentarius, porque por ela se tem uma visão privilegiada do Fórum e já se está aos pés do Capitolino.
Com a espantosa e inesperada visão do imenso Arco de Sétimo Severo ao fundo da viela, fui direto para ele, sem sequer atentar para o Cárcere Mamertino e passando “reto” por ele, magnetizado que estava pelo Triunfo. Apenas depois, olhando ao redor, percebi que jazia diante de uma das mais famosas prisões da história, de significado especialmente sensível para nós, cristãos. Não atentara, no mapa, para o nome da rua pela qual chegamos ali e, portanto, fui, e fomos, pegos de surpresa. Ali estava um dos pontos mais relevantes da antiga Roma, sobre o qual ouvira falar uma porção de vezes e que desejava muitíssimo encontrar — encontramos, pois, e inteiramente ao acaso! Houve comoção entre nós, visto estarmos cravando os pés no lugar no qual os dois principais dos apóstolos estiveram sob correntes. Naturalmente a imaginação pô-los ali, diante de nós e nalgum subterrâneo frio e escuro, e pôs ao redor uma igreja cristã heroica, ocultada nas insulae romana daqueles dias de perseguição. Crescidos ouvindo sobre Pedro e Paulo, e sendo Paulo o apóstolo de minha maior dedicação devocional e de estudo, não haveria como não marejarem os olhos! Dois milênios depois, uma família cristã visitava a morada final de grandes patriarcas da Igreja, sem os quais não estaríamos aqui — e nem lá.
Conhecido na época romana como Cárcere Tuliano, porque dali jorrava uma fonte de águas, chamada “tullius” em latim, e em homenagem ao sexto rei de Roma, Sérvio Túlio, responsável pela construção das Muralhas Servianas, sobre as quais falamos noutra ocasião, o Cárcere Mamertino remonta a 640 a.C., obra do rei Anco Márcio. Foi projetado inicialmente para ser uma cisterna, porque ali há fontes no subsolo, posteriormente dando passagem à Cloaca Máxima, que tinha nesse ponto um local para o depósito de cadáveres da Cidade. Tornado prisão, o Cárcere tradicionalmente abrigava apenados de importância política e de alto status, como comandantes estrangeiros derrotados, peças centrais nas exibições das procissões romanas. Retirados das correntes, os inimigos de Roma participavam das procissões e eram degolados ao final das mesmas, porque a Lei Romana não previa, então, a prisão por si só como punição, utilizando o Cárcere para “guardar” os prisioneiros até o momento de seu uso cívico. Nessa prisão foram trancafiados os membros da Segunda Conspiração de Catilina e ela foi a parada final daquele que é um de seus prisioneiros mais notáveis, Vercingetórix, líder gaulês nas Guerras Gálicas e grande inimigo de César na Gália, degolado no Cárcere em 46 a.C.
Os apóstolos Paulo e Pedro estiveram em prisão ali e foi do Cárcere Mamertino que receberam suas sentenças. Paulo fora degolado entre 65 e 67 d.C. e Pedro, pois, crucificado de cabeça para baixo em 64 d.C. Aquele foi morto num determinado ponto da Via Ostiense, este, por sua vez, no Circo de Nero, na colina do Vaticano, onde estão localizadas, respectivamente, as suas sepulturas — e ora jazem suas relíquias, depois de terem estado por um curto espaço de tempo nas Catacumbas de São Sebastião, localizadas no quartiere Ardeatino, junto da Via Ápia, onde hoje é o Parco della Caffarella. Quem assistiu ao filme Paulo, Apóstolo de Cristo, terá uma impressão interessante das referências ao Cárcere e ao Palatino encontradas no filme, podendo sentir, também, o vulto de Nero não muito distante, porque o seu palácio, no Ópio, não estava longe dali. Entendendo, ainda, a importância do Cárcere, na medida em que nele eram aprisionadas sobretudo figuras de relevância política e consideradas inimigas de Roma, se pode ter uma ideia mais clara da pressão que a Igreja estava exercendo na Cidade já nos anos 60 d.C., ao ponto de os apóstolos serem tratados como inimigos públicos do Império e rivais diretos do Imperador.
Para finalizar, o nome “Mamertino” merece um contexto, porque lança luz sobre o significado do Cárcere enquanto símbolo da tensão entre o paganismo e o cristianismo nos alvores da Era Cristã. Esse é um nome medieval e, conquanto há quem diga fazer alusão ao templo de Marte (“mamers” em osco) que se localiza no Fórum, é mais preferível ligá-lo a uma tradição cristã envolvendo o apóstolo Pedro: dois santos católicos, Martiniano e Processo, teriam sido os guardas de Pedro na Prisão, convertidos e batizados por ele antes de seu martírio — “Martiniano” está diretamente ligado a “Marte”.
Texto de minha autoria (como os demais deste canal) originalmente publicado em meu perfil pessoal do facebook em 7 de maio de 2024.