Roma Lupa
Estranhe-se como, à vista do Coliseu e do Fórum, uma das primeiras expectativas que criei com o advento da viagem à Roma foi o encontro com a Loba Capitolina, a qual já havia “conhecido” em passeios pelos “maps” e que foi um dos primeiros pontos de interesse que marquei no mapa quando nos organizávamos para a ida ao Velho Mundo. Ciente de sua pequeneza, se comparada à monumentalidade de Roma (embora, na realidade, suas dimensões sejam aproximadas das naturais), vislumbrei o seu encontro em função do seu apelo simbólico e da impressão que ela sempre causou em mim. A oportunidade deu-se no dia 21 de abril.
Saímos, eu, Gabrielle e meus pais, em meados da manhã já com o foco da subida pelo Monte Capitolino, através da passagem pelo Coliseu e pela Via dei Fori Imperiali. Domingo de sol, a Cidade jazia prenhe de multidões, principalmente porque passávamos pelo terminal de trem que sobe de Fiumicino até o terminal que está próximo ao Coliseu. Aos lados do caminho, como uma orla de mar, os sítios dos fóruns imperiais, todavia, seguiam libertos das massas, podendo ser divisados desde um ponto de vista mais alto — um respiro, graças a Deus! Não tardou para chegarmos do Celio, com o Palatino ao lado, aos pés do Capitolino, iniciando a subida desde as escadarias que se lançam na redondeza do Cárcere Mamertino e à vista dos Templos de Concórdia e de Vespasiano e Tito, na Via dell’Arco di Settimio. Chegamos, da escadaria, novamente à Via di S. Pietro in Carcere, de onde divisamos, ao longe e diminuta, a afamada Loba, postada numa coluna que está ao lado do Direzione Musei Capitolini. Impelido pela sua silhueta, subi diretamente na sua direção.
Curiosamente, o fato de ser pequena, e li comentários de muitas pessoas dizendo que ela quase lhes passou despercebida, pareceu-me aumentar a sua preciosidade — tão tímida, quase escondida ao lado do caminho, no meio daquela vastidão de edificações ciclópicas e titânicas em pedra perene. A sensação de encontrá-la torna-se, então, quase como o achado de um pequeno tesouro, que precisa ser procurado com atenção e que recompensa quando encontrado, já que foi buscado. Não pude deixar de perceber como muitos passavam ao largo dela, sem divisá-la, e outros paravam ali por poucos segundos, aparentemente frustrados — já que foram à Roma atrás de gigantismos ancestrais, que impressionam pelo volume. De certa maneira, ali a multidão se dissipava, não permanecia, não se via — a Loba não é, por assim dizer, “instagramável”, ao contrário da imensidão do Campidoglio, a praça projetada por Michelangelo, que está logo adiante. Ademais, seu aspecto não é, por assim dizer, formoso, carregado de traços esculturais arcaicos, com uma menor impressão de realismo e de potência. Solitária, enfim, no seu pináculo, a Loba jaz indiferente e amamenta seus “filhotes”, marcando perenemente o mito fundacional da Cidade.
Conta-se que o rei Numitor, avô dos gêmeos Rômulo e Remo e senhor de Alba Lunga, cidade fundada por Eneias, herói na Guerra de Tróia, fora deposto de seu trono pelo seu irmão Amulius, que ordenou que os meninos fossem lançados nas águas do Tibre. O nascimento desses meninos é misterioso: após ter matado todos os varões da casa de Numitor, Amulius obrigou sua sobrinha, Reia Silvia, à castidade implicada no sacerdócio foçado à deusa Vesta, mas esta engravidou divinamente de Marte, que é, então, o pai dos gêmeos. Ao descobrir os bebês e sua origem, Amulius depositou os bebês em um cesto, entregando-os à sorte do Rio. O cesto, todavia, atolou nas margens que estão nas bordas do Palatino, sendo, pois, resgatados por uma loba, que deles cuidou e que a eles nutriu até serem encontrados por um camponês chamado Faustulus. A Loba foi feita símbolo, em função disso, da origem divina de Roma e, portanto, o anúncio de sua legitimidade enquanto Cidade Eterna.
Estamos, aqui, diante do mitológico em essência, à vista do mito enquanto gerado diretamente do manancial autêntico, primevo, à luz de uma miríade de motivos arquetípicos universais — os gêmeos, o lançamento da criança nas águas e num cesto, o favor do Destino através dos elementos naturais… O mais impressionante é que a escultura que se vê como retrato do gérmen da Cidade é ela mesma provavelmente forjada no tempo em que o próprio mito era crido como fato, donde seu aspecto arcaico, e feita sob uma aura religiosa, numinosa. Digo-o, pois se debate a sua origem e a sua idade, com o consenso mais antigo atribuindo-a ao Séc. V a.C., sendo peça de arte etrusca moldada por Vulca de Veios. Estudos mais recentes, apesar disso, atribuem a ela uma origem medieval, dos Sécs. XI ou XII — mesmo assim, a maioria das autoridades segue defendendo a hipótese etrusca. As figuras dos bebês Rômulo e Remo foram anexadas à Loba por Pollaiuolo no Séc. XV, com bronze doado pelo Papa Sisto IV e transferido do Latrão, no rione Monti (junto do qual nos hospedamos), ao Capitolino.
Da impressão que a Loba causou em mim desde quando a vi pela primeira vez nos livros de história do colégio, penso que o elemento cruento, selvagem, bestial, até um pouco vulgar de sua lupina exuberância láctea, seja aquele que mais me “pegou”. Hoje entendo que nisso resida o paradoxo que insta na escultura e que sintetiza o que realmente Roma foi: a besta primitiva, num dos comportamentos mais instintivos, dá alimento a duas crianças humanas, contendo o seu ímpeto predatório em favor dos filhos de um deus — então há aqui, na docilidade do acalento lupino aos bebês e na “vulgaridade” selvagem da cena, a dualidade romana. Como já disse Rémi Brague, os romanos estavam conscientes de sua própria origem bárbara e do misto de gentes que compunha a sua Civis, enquanto buscavam assimilar a herança grega, propriamente “civilizada”, a qual replicaram em diversos de seus hábitos e na sua arquitetura. Além disso, Cidade imensa e insaciável, se tornou o epicentro das maiores glórias da Antiguidade, porque filha dos deuses, e o epicentro de toda a maldade em seu máximo nível, de todas as sujidades, de todos os pecados e de todas as corrupções — donde filha de uma “cadela”, “apelidada” pelos cristãos primitivos de “prostituta”. Talvez essa seja a sina de todas as grandes cidades históricas, cuja existência é sempre lançada por sobre o fundamento instável da contradição — algo similar a isso é dito por R. C. Linthicum a respeito de Jerusalém, etimologicamente “YHWH” + “Asher”, o misto da Morada de Deus com o Covil do Demônio.
Após o tempo no “passo da Loba”, adentramos no Campidoglio, um contraste completo com a timidez e a ocultação da Loba — parte do paradoxo romano sobre o qual tanto temos falado aqui. Ali, no topo do Capitolino, outrora estivera o grandioso Templo de Júpiter Capitolino, dedicado a Júpiter, Juno e Minerva, remontando ao tempo inicial da República Romana. Persistem na fachada do grande palácio duas estátuas antigas de deuses dos rios, representativos dos rios Nilo e Tibre e pertencentes às Termas de Constantino, alocadas no Quirinal e datadas de cerca de 315 d.C. — um dos grandes símbolos da suntuosidade luxuriosa da Cidade. A passagem pela praça monumental, com sua variada e magnífica estatuária, terminou com a descida de sua famosa escadaria e a nossa opção, à vista do antiquíssimo Teatro di Marcello a sudoeste, de continuar rumo nordeste, passando pelas ruínas de uma insulae romana e, através do colossal Monumento a Vítor Emanuel II da Itália, subir ao Panteão — com a infelicidade de não termos tomado um caminho apenas ligeiramente diferente, que nos teria dado vista ao Largo di Torre Argentina, no Campo de Marte e no qual residem as ruínas do Teatro de Pompeu e da Cúria de Pompeu, local do assassinato de Júlio César.
Texto de minha autoria (como os demais deste canal) originalmente publicado em meu perfil pessoal do facebook em 8 de maio de 2024.