A Estátua Falante

Diário de viagem #10

Natanael Pedro Castoldi
5 min readMay 9, 2024
Foto tirada pelo autor do presente texto no dia 21 de abril de 2024. A Estátua.

Descemos pela escadaria monumental do Campidoglio, a belíssima praça projetada por Michelangelo no cume do Capitolino, e seguíamos na direção do imenso Monumento a Vítor Emanuel II da Itália, que está logo ao lado. Roma jaz repleta de pequenos tesouros escondidos, alguns deles muito humildes, e entre as ciclópicas edificações do Monte, bem no meio (e ao lado) do caminho entre a Praça e o Monumento, divisamos uma ínsula romana, a Insula dell’Ara Coeli, do Séc. II.

Foto tirada pelo autor do presente texto no dia 21 de abril de 2024. A Praça — com vista ao Monumento.

Localizada na Via del Teatro di Macello, cujo vulto se projetava na direção sudoeste, dell’Ara Coeli possuía originalmente cinco pavimentos e guardava uma miríade de unidades de moradia independentes, como é o caso geral das insulae romanas, além de estabelecimentos comerciais alocados no andar térreo, dentre tavernas e lojas. Eduardo Hoornaert (Os Cristãos da Terceira Geração) e Alan Kreider (O Paciente Fermento da Igreja Primitiva) me ensinaram que as igrejas em Roma e em cidades romanas nasceram, via de regra, nas insulae, nos “conjuntos habitacionais”, na medida em que os cristãos de antanho eram, em sua maioria, pertencentes às classes trabalhadoras e mais humildes, e ocupavam a melhor sala do melhor “apartamento” dentre os dos irmãos, sala que era especialmente organizada e decorada para a realização dos cultos. Parte considerável do crescimento do cristianismo em Roma se deu em função disso: os vizinhos de porta percebiam algo acontecendo e notavam que aqueles que entravam à cerimônia volta e meia saíam dela alimentados e, se chegassem com roupas em trapos, vestidos de peças novas e limpas, e passaram a se interessar pelo que acontecia ali e a desejar acompanhar o progresso material e espiritual dos chamados “cristãos”, com os quais conviviam de muito perto. Em tempos de perseguição, as igrejas instaladas nos formigueiros das insulae se tornavam de difícil detecção para as autoridades palacianas e eram, em diversas ocasiões, amparadas pela sua vizinhança, sendo elas benéficas à vida comum e havendo, não raramente, resistência popular aos desmandos da classes política e burocrática.

Em dell’Ara vimos, ainda, o que deveria ser o altar de uma pequena igreja cristã instalada nos andares superiores. Embora seja simbólica a existência de uma igreja cristã nessa ínsula — visando o supracitado -, esta em específico, chamada San Biagio de Mercato, fora fundada ali durante a Idade Média, quando dell’Ara, ainda de pé, possuía um mercado — a estrutura foi funcional até o Séc. XV. Mesmo sendo medieval, a Igreja do Mercado nos lança diretamente à memória das igrejas que existiram nas insulae da Roma Antiga, servindo de motivo para impressões a respeito do clima religioso e espiritual romano, dentre aquele misto de gentes da Civis, perdido, nos alvores da Era Cristã, entre sincretismos e superstições, religiões de mistério e a curiosidade do culto ao Cristo. O clima mental em mim instilado pela visão da ínsula e de sua igreja foi preparatório para o que viria em seguida.

Foto tirada pelo autor do presente texto no dia 21 de abril de 2024. Afresco do altar da Igreja.

Continuamos subindo pela Via del Teatro di Macello até a altura do Monumento, quando cruzamos à Piazza di S. Marco na direção do belíssimo Giardini di Palazzo Venezia, que está junto da basílica San Marco Evangelista al Campidoglio. No caminho lateral da Piazza, após a Fontana della Pigna e no fundo da ruela, junto da parede do Giardini e próximo de seu pórtico vimos o imenso busto de uma estátua feminina, altamente derruída pelo tempo e pelas chuvas dos séculos. Uma presença estranha, primitiva, aparentemente deslocada do entorno, ali em um canto escondido e sombreado — mais um tesouro romano ocultado entre os titanismos, embora esse não soasse tão humilde quanto a Lupa e quanto a Ínsula. Algo de numinoso emanava da cena do fragmentado colosso, postado diretamente à nossa vista, bem no fundo do caminho, e fomos na sua direção, arrebatados pela curiosidade. Certamente, soube de imediato, era uma estátua arcaica, sacra, algo pagã e de uma deusa — não sabia, contudo, de qual.

Foto tirada pelo autor do presente texto no dia 21 de abril de 2024. Fonte do Giardini.

Qual a surpresa que tive quando posteriormente descobri do que aquela escultura esquisita, um tanto arruinada, se tratava! Ali estava uma das afamadas “seis estátuas falantes” de Roma, chamada Madama Lucrezia em homenagem à amante de Afonso V de Aragão, rei de Nápoles. Transferida para este ponto em 1590 à mando do cardeal Lorenzo Cybo de Mari, a Madama possui três metros de altura e remonta à Roma Antiga, com difícil precisão de sua idade exata. O detalhe do nó em sua túnica é característico das vestes das sacerdotisas do culto à deusa Ísis, de maneira que essa estátua deve ser da própria deusa Ísis, objeto central de um dos mais famosos cultos de mistério do período imperial — nesse caso, um sincretismo romano importado diretamente do Egito. Pertence à categoria das “estátuas falantes” porque, como no caso das demais, é dela a “voz” proclamadora de diversas “pasquinadas”, ou sátiras irreverentes proferidas anonimamente contra autoridades políticas e religiosas, objetivando ferir a reputação de figuras públicas romanas. Em 1591, por exemplo, Lucrezia afirmou, a respeito do papa Gregório XIV, quando este se mudou para o Palazzo Venezia visando uma recuperação de sua saúde, que “a morte passou pelos portões”. Em 1799, durante a República Romana, Lucrezia foi jogada ao chão pelo povo revoltoso e, de “bruços”, “disse” a frase: “Nem eu posso ver mais”.

A ideia de suas dimensões originais, sugerindo que ela tenha sido cultuada como estátua de corpo inteiro, está na tese de que o famoso Pie’ di Marmo, que esta na Via di Santo Stefano del Cacco, em Rione IX, Roma, seja dela. Isso se deve ao fato de que o próprio Pé de Mármore é atribuído à imensa estátua de uma deusa feminina que estivera no Templo de Ísis e Serápis, o Iseo Campense, que outrora se localizou nas imediações do Pé. Introduzido em Roma no Séc. I a.C. e após grande resistência dos aristocratas tradicionalistas, que conseguiram derruir todos os santuários privados localizados no interior das Muralhas, em 43 a.C. o Iseo Campense foi erguido no Campo de Marte, com seus ofícios suspensos por Agripa (23 a.C.) e por Tibério, mas reintroduzidos por Calígula, perseverando até o final do Império. O Templo fora destruído por um incêndio em 80 d.C., reconstruído por Domiciano, ampliado por Adriano e restaurado pelos severianos (lembre de Sétimo Severo), estando ainda em funcionamento no Séc. V d.C.

Remetemo-nos, então e derradeiramente, ao cerne das superstições e da idolatria de Roma em seu tempo pagão e voltamo-nos, num átimo, ao caldeirão das multidões e dos fervores religiosos que ardia nos subterrâneos da Cidade nos primeiros séculos depois de Cristo.

Texto de minha autoria (como os demais deste canal) originalmente publicado em meu perfil pessoal do facebook em 9 de maio de 2024.

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Natanael Pedro Castoldi
Natanael Pedro Castoldi

Written by Natanael Pedro Castoldi

Psicoterapeuta com formação em teologia básica e leituras em história das religiões e simbolismo. Casado com Gabrielle Castoldi.

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