Cristo e Anticristo na Alma Ocidental

O vulto do Senhor Jesus como sina da Civilização

Natanael Pedro Castoldi
21 min readNov 21, 2023
Ilya Yefimovich Repin — Get Thee Behind Me, Satan

Na alma cristã, e isso pertence à economia escatológica sob a forma de fenômeno, ou intuição, o Anticristo ocupa o lugar de Sombra de Cristo — o que quer dizer, não que o Anticristo seja a inversão interna de Cristo, mas o Seu inverso em sentido ‘teodiceico’, sob as formas da Anomia e da Abominação, conforme o assombroso mistério conhecido pelo apóstolo Paulo e por ele transmitido em 2 Tessalonicenses 2:3–12. De fato, pertence à visão escatológica da história e da cosmologia uma espécie de tensão de opostos, que não pode ser dialética, na medida em que não são opostos absolutos em sentido literal, mas opostos lógicos sem conciliação final, senão a aniquilação ou dissipação da Sombra.

Essa lógica está bem estabelecida, por exemplo, em Apocalipse 22:11: “Continue o injusto a praticar injustiça; continue o imundo na imundícia; continue o justo a praticar justiça; e continue o santo a santificar-se”. O sentido, em termos de Economia da Salvação, é o do necessário agravamento da iniquidade, na medida em que a Igreja se santifica, porque o conflito cósmico que conduzirá o Mundo ao Vale do Megido pede por uma intensificação dos contrários em progressão exponencial, com aceleração no limiar do Fim, quando todas as forças de Satanás, assim como todos os reinos da Terra, estiverem reunidos sob o comando do Anticristo, para combater, tal como Ninrode procurou empreender, o próprio Deus, o Senhor Jesus e as hostes celestiais, nas quais estarão contados os filhos de Deus Pai. A multiplicação da maldade, com o esfriamento do amor e o agravamento da violência ímpia contra a Noiva de Cristo, dará no transbordamento dos Cálices da Ira do Senhor e, dele, no despejamento do Juízo sobre o Mundo inteiro. O agravamento da violência ímpia contra a Noiva de Cristo tem relação direta com a santificação da Igreja que, como Cidade Iluminada, atrairá para o Senhor os Seus eleitos, mas igualmente, fulminando as escuridões sempre mais densas, todas as cargas de ímpeto sanguinário da parte dos Filhos das Trevas.

A intuição incipiente nessa visão de coisas é a de que o máximo resplendor de Cristo na Igreja é causa, por assim dizer, de uma agitação subterrânea e ínfera de todas as potências malignas, e o motivo da cabal manifestação do Anticristo, como servo do Diabo.

A vinda do Anticristo não é apenas uma predição de caráter profético, mas uma lei psicológica inexorável, cuja existência levou o autor das Cartas [de João], sem que ele o soubesse, à certeza da enantiodromia vindoura. E é sobre isto que escreve como se tivesse consciência da necessidade interior desta transformação, acreditando que a ideia era pura revelação divina. De fato, qualquer diferenciação maior da imagem de Cristo ocasiona um reforço paralelo ao complemento inconsciente, o que faz aumentar a tensão entre o em cima e o embaixo. — C. Jung, Aion. p. 40

Nota-se e repete-se: há uma intuição enantiodrômica nos sentimentos ocidentais, uma espécie de lei hieraclitiana imiscuída de escatologia e pela qual se vislumbra um aprofundamento da tensão polar entre os dois princípios cósmicos mais elementares, na medida em que os Tempos de arrastam na direção do Fim da Era, cujo termo, tal como conhecido entre os indo-europeus na sua visão das Idades do Mundo, e estando nós na última, será conhecido desde um cataclismo de proporções universais — fechamento do ciclo das Idades por uma Ekpyrosis Universal, antecedida por uma aceleração e uma intensificação das guerras sanguinárias e das catástrofes, chamada entre os nórdicos de Ragnarök e predecessora de um novo ciclo das Idades, principiado numa Idade do Ouro.

… a própria Cidade, como cosmion, lançava as raízes da ordem social na qualidade do sistema cúltico.

Em todos os casos, o Mito apresenta uma metafísica incipiente, exposta já na cosmogonia: as forças ordenativas e solares combatem e vencem as forças caóticas primevas, oceânicas e noturnas, impondo-se sobre elas, dominando-as e informando-as para que respeitem limites e se comportem segundo leis e ciclos. O sistema cúltico, ensinado pelo Divino aos homens, servirá para sustentar a ordem do Mundo, atualizando a cosmogonia e recuperando ritualmente as potências genesíacas, para extrair delas cargas de energia que, ordenadas à vista de seus canais e de seus usos, renovem e conservem a vitalidade do Cosmos. Os principais ritos desta qualidade eram os do Ano Novo, quando o Mundo, fechado o ciclo das estações e dado frutos aos homens, jazia morrente, e outros ritos importantes nesta categoria envolviam a fundação de uma cidade ou de um templo, ou mesmo o sepultamento do rei morto e a coroação do rei novo. Isso quer dizer que o sistema litúrgico, primitivamente sacrificial e orgiástico, era fundamental para alimentar a autoconfiança dos povos, sustentados sob garantias de favor divino e de perduração cíclica do Mundo, e a própria Cidade, como cosmion, lançava as raízes da ordem social na qualidade do sistema cúltico. Períodos de transição civilizacional, da ruína de grandes impérios pela invasão de povos estranhos, de pragas e fomes, de derrotas militares e revoluções nos mares e nos céus, suscitavam generalizada angústia, porque o desfavor divino sinalizava uma rejeição das divindades tutelares dos cultos a elas oferecidos, impedindo a eficácia ritual e justificando, como também perpetuando, a perspectiva de alastramento desordenado das forças ínferas, emanações do Caos ou do Abismo. Crises tais também afetavam a legitimidade do Palácio, de autoridade fundada na excelência do Culto, e todo o sistema jurídico padecia de crescente desconfiança em termos de eficácia e de potencial justificador. Momentos assim eram propícios, portanto, para a instalação de um novo governo, junto de seu próprio sacerdócio, trazido pelo rei estrangeiro quando da dominação da nação vitimada. Dessa maneira se deve entender todo o processo de difusão do culto e dos reinos indo-europeus dentro da Europa do Neolítico e do Bronze, como os aqueus na Ática.

O período chamado de Era das Trevas, principiado na Queda de Roma, foi antecedido por múltiplos séculos de crise. Desde antes do Imperador Augusto, que governou até os anos iniciais da Era Cristã, estava instalado na República um sentimento de Ekpyrosis iminente, de Último Saeculum, o do Sol, cujo termo se daria na fulminação do Universo, desfeito em brasas, para uma subsequente Era Dourada. Todos os sinais da Ekpyrosis, além do próprio término da idade profética de Roma, baseado na leitura divinatória das Doze Águias vistas por Rômulo, eram visíveis: guerras civis muitíssimo violentas e calamidades eram prelúdios, segundo os estoicos, os gnósticos e os astrólogos, do Fim. O governo de Augusto, tornado o primeiro Imperador, é coroado, na medida em que por meio dele o Culto é revivificado, a autoridade é reinstituída e a Pax predomina, com uma reinterpretação da Ekpyrosis: Roma transitara para a Era Dourada sem a aniquilação, sendo a Ekpyrosis os próprios eventos antes tomados por antecipatórios. Mas a Pax Aeterna e o status de Roma como Urbs Aeterna foram terrivelmente testados nos séculos subsequentes. Como afirma Eliade

Augusto mal havia falecido quando a história passou a desmentir a era do ouro, fazendo com que o povo voltasse a viver a expectativa do desastre iminente. Quando Roma foi ocupada por Alarico, parecia que o sinal das doze águias de Rômulo tinha triunfado: a cidade estava entrando em seu décimo segundo e último século de existência. — O Mito do Eterno Retorno, p. 117

Santo Agostinho, quando Roma estava de fato em seus últimos dias, será o grande proponente do antigo empenho cristão contra o fatalismo astrológico, que por tantos séculos aterrorizou os romanos. Há, de fato, uma Roma perene, que jamais terminará, e ela está instalada no seio da humanidade, no coração da Orbs Terrarum, desde o princípio, assim como há uma Roma efêmera, nascente e morrente sob diversos nomes, mas sempre baseada nos mesmos empenhos infraterrenos. A teologia agostiniana das Duas Cidades, a de Deus e a dos Homens, estabelece a adequada síntese entre os sentimentos gentílicos e a escatologia judaico-cristã, dando as bases da mais importante e da mais determinante teologia cristã da História, porque a Cidade de Deus está sempre representada por uma minoria de eleitos fiéis ao Senhor, estendidos ao longo de todos os tempos como uma edificação espiritual, éctipo do arquétipo celestial, simbolizado na Nova Jerusalém, e, na condição de peregrina, tensiona profeticamente com a Cidade dos Homens, erguida sobre todas as vaidades e o desejo de perenização no Mundo. Essa será a visão que predominará nos sentimentos cristãos ocidentais ao longo de toda a Idade Média, tornado popular e parte do imaginário cristão através do processo descrito por Peter Burke nas relações entre a Grande Tradição (erudita e universal) e a Pequena Tradição (folclórica e local).

… só Deus pode determinar o Fim, nunca o homem e seu ímpeto de imanentização do Eschaton…

É importante observar como o vulto escatológico, primeiro o judaico, depois o cristão, herda qualidades intemporais da metafísica incipiente no Mito. Porque já pertencia ao pagão o entendimento de que as mesmas forças caóticas dominadas no Princípio seriam a causa, no Fim, do desordenamento geral do Mundo, que isso se consumaria num clímax, com a batalha final e total das forças ordenativas e solares com as forças entrópicas e oceânicas, findada na derrota da Ordem, previamente enfraquecida, donde a aniquilação de todas as formas e a possibilidade de uma nova cosmogonia. Naturalmente sob formas mais desenvolvidas e intelectualizadas, os judeus conheceram previsões de juízo divino cabal sobre os inimigos de Deus, acompanhado de uma insurreição beligerante dos santos do Senhor, ritualmente purificados, e da tomada do Mundo para o Reino Messiânico Eterno. O Remanescente Fiel, como no caso dos essênios de Qumran, entendia que o Santuário em Jerusalém jazia dessacralizado, tendo sido abandonado por Deus e jamais reabitado, por conta de uma classe sacerdotal corrupta e de sua subordinação política aos ímpios, sob regência de Herodes, a Estrela de Absinto. E se o Templo já não era mais sagrado, não havia mais eficácia na liturgia e nenhuma fonte de legitimidade para o culto e para o governo dos homens, de maneira que as ordens religiosa e palaciana não mais correspondiam a nenhuma realidade transcendental, não possuindo Justiça e qualidade cosmicizante, devendo ser aniquiladas, em Guerra Santa, para o restabelecimento da Ordem segundo Deus, com um Rei como Davi e o seu sacerdócio melquisedóquico, para um Novo Templo e uma Nova Jerusalém. Sentimentos tais progrediam em profusão entre as populações palestinianas do tempo de Cristo e sustentaram parte substancial dos sentimentos cristãos aurorais, retificados por Jesus em um sentido mais espiritual do que literal, conforme Agostinho, muito posteriormente, imprimirá de maneira indelével: só Deus pode determinar o Fim, nunca o homem e seu ímpeto de imanentização do Eschaton, porque o Reino de Deus “não é deste Mundo”, só se estabelecendo em sua forma total na Terra quando a Nova Jerusalém descer dos Céus, depois de este Mundo deixar de existir.

A teologia agostiniana da História retira dos homens a posse sistemática dos meios divinatórios de antever o Fim por meio de cálculos astrológicos e, com isso, obscurece a inteligibilidade dos eventos cataclísmicos, das fomes, das pestes e das guerras em termos cósmicos, ou segundo mecanismos internos do Mundo e sua lógica e seus ordenamentos antecipatórios e retrocipatórios — é difícil a percepção clara do lugar, dentro de uma progressão previsível, que revoluções naturais, por exemplo, ocupam, porque se perdem as medidas consagradas e se deve ficar com a Revelação, que é equívoca em termos interpretativos. Isso tira do homem, também, algo do controle que ele acreditava possuir por sobre os destinos do Mundo, baseado no acesso a conhecimentos precisos e infracósmicos a respeito do porvir. O resultado é que cada novo evento de alto impacto coletivo, dentro da Europa cristã, era entendido como um possível limiar do Fim, na medida em que o Império de Satanás estava atuando, e a todo o vapor, no meio da alma europeia, e candidatos a Anticristo, ou seus tipos, estavam sempre no ponto de eclosão. Esse, ou nesse espírito, foi o tratamento dado dentro da Cristandade aos rivais internos da Igreja, como papas e antipapas, e aqueles papas que se excomugavam mutuamente, e na relação entre papas e imperadores ou reis inimigos dos amigos da Igreja. Com isso, não estabeleço nenhum juízo de valor, mas apenas a descrição do quão trágica e do quão severa é a absorção da escatologia judaico-cristã na Cristandade, e de como o vulto do Anticristo e da Anti-Igreja acompanhou-a, como um inverso lógico, em todos os lugares. Daí, na medida em que o Império, conquanto tensionasse com a Igreja, não era rival em termos confessionais, porque era cristão e devedor da legitimidade atribuída a ele pelo papa, e na medida em que todas as nações europeias eram partícipes da mesma Comunidade Espiritual sob a Igreja, o Katechon paulino oscilar entre a Igreja e o Império/Estado, porque ambos colaboraram, alternadamente, para a conservação do Nomos e para a ameaça da Anomia, e assim foi enquanto a Cristandade existiu e tanto a Igreja quanto o Estado se consideravam, ou poderiam ser considerados, cristãos.

A teologia agostiniana da História retira dos homens a posse sistemática dos meios divinatórios de antever o Fim por meio de cálculos astrológicos…

A Era Moderna é marcada, desde o início, por uma reação ilustrada ao Cristo, à Igreja e ao antigo regime medieval de Cristandade. Conquanto a astrologia tenha persistido durante toda a Idade Média, com raras exceções fora aceita publicamente para finalidades escatológicas, as quais se conservavam sob o regime da Revelação. O Katechon atuava como um fator de retardamento da eclosão da Anomia, sempre a uma fagulha do estopim, de maneira que as crises internas da Igreja eram contrabalançadas por recrudescimentos do Estado e crises no Estado, quando este ameaçava ocupar o cetro eclesiástico, eram contrabalançadas por enérgicas reações da Igreja — e assim foi até que a Cristandade, enquanto Civilização, desgastou-se internamente e seu metabolismo passou a fraquejar e a apresentar sinais de ineficácia. As Guerras Religiosas subsequentes ao Grande Cisma do Ocidente deram margem ao laicismo e à rebelião iluminista contra a Tradição. O princípio do Anticristo e do Juízo, que pertence à Economia da Salvação e à manifestação da Anomia, precisa ser combatido para que se possa fazer prevalecer a Economia dos Homens, do Império, que se quer atemporal, Urbs Aeterna.

Desautorizada a Revelação, a astrologia, junto doutros ramos da ciência incipiente, começa a recuperar seu vigor e a se recolocar como instrumento premonitório para lidar com o problema da História. Todavia, o milênio de Idade Média estabelecera o motivo escatológico judaico-cristão de maneira indelével na alma ocidental, tornando inescapável o vulto do Anticristo e a sombra do Juízo Divino. Agora, porém, que a Revelação já não mais encontrava lócus privilegiado na vida pública e a astrologia jamais recuperaria o livre e soberano status que tivera na Era Pré-Cristã, sobra o que Eliade chamou de Terror da História, porque não há mais nenhuma chave de leitura acessível e crível para conhecer os Tempos.

… a dissipação do vulto do Anticristo é intentada pela negação direta do Cristo…

Para essa finalidade se recorrerá, como somatório das intenções ilustradas, ao afamado Ideal de Progresso, supostamente baseado em leis da Natureza (substituta da Criação), mas, na realidade, um paganismo redivivo. O Ideal do Progresso, tão bem descrito por Christopher Dawson, não reconhece nenhum Fim, querendo prosseguir de onde o imperador Augusto parou: o estabelecimento de uma Nova Roma, que desconhece limites espaço-temporais, e cujo objeto é a totalidade, ou a construção infraterrena de todas as potencialidades humanas, por meio do aprimoramento técnico e da inteligência, rumo a uma unidade humanitária plena, sem contradição, e em perfeita harmonia com a Natureza, inteiramente dominada. Não se ignore aqui a presença de motivos cristãos secularizados, porque a visão da Nova Jerusalém é retirada do tempo posterior à Era e inserida dentro do Tempo, e a História é vista como terminável quando todos os seus mecanismos internos chegarem aos seus termos lógicos e não houver mais possibilidade de progressão — esse é o sentido da Pós-História, que não será mais do que um eterno presente. Para os revolucionários de estirpe marxiana, esse salto pós-histórico se deverá obter por meios praxiológicos, introduzindo a enantiodromia universal pela via da Luta de Classes e da instalação de uma tensão polar, de tipo dialético, que vá ao limite e ao Caos. Vê-se aqui, ao fim e ao cabo, que a dissipação do vulto do Anticristo é intentada pela negação direta do Cristo, do Logos Encarnado, e da Parousia.

Há uma intuição interessante nesse movimento, historicista por excelência: se a Carne for pulverizada e toda a materialidade for transformada em uma virtualidade manipulável pela inteligência e pela técnica humanas, não havendo fundamento metafísico e substancial para o Mundo, se a Palavra Encarnada, o Cristo, for feito “Palavra Pura”, ou “Razão” (Gnose), e o homem Jesus for transformado em apenas um “Jesus histórico”, não haverá Parousia e toda a transformação possível se desenrolará desde dentro da própria Natureza, num processo de refinamento interno às raias da fantasmagorização. É esse o sentimento que jaz instalado na teologia de Bultmann, para quem o Evangelho é mito no sentido de ter sido escrito sob os ignorantes olhos de autores pré-científicos, que viam acontecendo externamente, no Cosmos, aquilo que na realidade é símbolo ou veículo de transformação interior do crente e, desde o crente, de todo o homem — Cristo deve nascer, morrer e ressuscitar nos corações de cada um de nós, para que nós evoluamos enquanto seres humanos. Assim, a Carne de Cristo é pulverizada numa espécie de Cristo Cósmico, que nada mais é do que uma abstração, ou um sinônimo da “Humanidade Evoluída”, unívoca e pacificada. De fato: quando o Cristo é diminuído, fica parecendo que o Anticristo, a ameaça do Terror Histórico, também enfraquece, porque o homem não tem mais que lidar com a sombra do Juízo Divino, que o obriga a encarar-se em sua vaidade e pequeneza, já que ele é obrigado a prestar contas de si mesmo a Outrem. Nesse ínterim, desfalece o horizonte escatológico, ao menos em seu sentido diurno, a própria Igreja passa a ocupar-se prioritariamente em “melhorar o Mundo”, em redimir todas as esferas da Cultura, em ser um “agente crístico de pacificação” e salvação infra-histórica da humanidade, porque “Jesus” se torna rótulo para tudo aquilo que for considerado bom e útil à Economia dos Homens.

Esse é o sentido do Anticristo enquanto inverso lógico do Cristo: é “número de homem”, a hiperbolização de tudo aquilo que pertence ao Espírito do Século e aos Tempos…

Mas o Ocidente não pode fugir de sua sina, que está marcada em sua infraestrutura. O “Cristo” humanitarista (segundo o termo de Babbit) é a própria pessoa do Anticristo, na medida em que esse “Cristo” é o exato oposto do Jesus da Parousia, ou do Logos Encarnado — ele é o seu contrário lógico em todos os sentidos: a imanentização do Transcendente, a desmaterialização (ou dessubstancialização) da Carne, a terrestrialização e hominização total do Divino e a sua espacialização e cronificação, sendo tornado, pois, inteiramente horizontal. Esse é o sentido do Anticristo enquanto inverso lógico do Cristo: é “número de homem”, a hiperbolização de tudo aquilo que pertence ao Espírito do Século e aos Tempos, a intensificação de todas as potências sublunares, que são prometeicas e dadas ao titanismo, ou à revolta contra Aquele que se assenta no Empíreo. À semelhança do rei de Tiro, que, por sua vez, foi como Satanás, quer-se como deus terreno, Adão Kadmon, e põe seu trono no meio dos mares, tal como o Senhor o fez no Um Dia, para desafiar ao Senhor desde Babilônia, que é Babel, e toma para si o Santuário, postando-se nele como divindade demiúrgica:

… não será assim sem que antes venha a apostasia, e se manifeste o homem do pecado, o filho da perdição, o qual se opõe, e se levanta contra tudo o que se chama Deus, ou se adora; de sorte que se assentará, como Deus, no templo de Deus, querendo parecer Deus. — 2 Ts 2:3–4

O Espírito do Anticristo é aquele que insta na negação da Parousia em favor de uma perenização do tempo cronológico, porque a negação da Parousia é também a negação da Ekypirosis, visto que rejeita o controle e o arbítrio divinos, de matiz transcendental, no Mundo, limitando-o ao desenrolar cíclico de leis internas, à moda dos pagãos. Os Filhos das Trevas são aqueles que o apóstolo Pedro vê atuantes nos Últimos Dias, escarnecedores de Deus, porque não querem impor restrições às suas concupiscências, e zombadores da Promessa, dizendo: “Onde está a promessa da sua vinda? porque desde que os pais dormiram, todas as coisas permanecem como desde o princípio da criação.” — 2 Pe 3:4. Todavia, argumenta o Apóstolo, o Anticristo, Ninrode dos Tempos, não está seguro no trono leviatânico dos Mares, como Falso Rei do Mundo, porque Deus, depois de ter criado todas as coisas pelo afastamento das Águas do Abismo, permitiu com que se levantassem sobre a Terra na ocasião do Dilúvio, e novamente destruirá a última geração dos homens, como destruiu a última geração antediluviana, abominável berço de nefilins. O fará, contudo, não com o transbordamento das Fontes do Abismo e da derrubada das Águas Superiores desde os Confins, mas pelo abrasamento do Firmamento, que deixará de existir, e pelo despejamento dos fogos do braseiro do Templo Celeste, os quais não lavarão a Terra, como no tempo de Noé, mas a desfarão como sacrifício sobre o Altar, para que seja completamente purificada e, reduzida a nada, possa renascer de matéria celestial, como Nova Criação, na qual já não haverá Mar, porque o Mar terá sido lançado no Lago de Fogo. O que quer dizer: não haverá Caos.

O simbolismo escatológico inteiro, como acabamos de ver e prenunciamos anteriormente, replica o Mito cosmogônico, mas não culmina na solução da cosmogonia, que se deu na conservação dos polos Caos e Ordem através da separação e do afastamento entre a Terra/Mares e o Céu. Essa solução, estruturante da cosmologia, sustentava uma hierarquia ontológica baseada na delimitação dos Confins da Terra (Efes), nos quais estão os Quadrantes do Mundo e depois dos quais há o Nada e o Abismo, ou o Oceano Primevo, que Deus empurrou para além dos Pilares da Terra — o Oceano Primevo é todo Caos Genesíaco e umedece as profundezas do Mundo com vitalidade, sendo impedido de subir pela Pedra Fundamental do Mundo, que contém o Nome de YHWH e que está nos alicerces do Templo (ela foi removida na ocasião do Dilúvio). Dos Mundos Inferiores, sobe-se, na Tradição, aos diferentes Céus, para além do Domo Celeste, cujo zênite é o Aravot, onde está o Trono de Deus, faiscante e relampejante, imerso na Luz do Um Dia e da Glória Divina — é esse o Trono que se deslocou sobre o Oceano, comandado pelo Sopro de Deus, o Ruách, para fecundar as Águas Primordiais, e foi esse o Trono visto pelo profeta Ezequiel. A escatologia vê as forças caóticas do Abismo, sob o símbolo de Leviatã (a totalidade das potências oceânicas) e Beemote (a totalidade das forças telúricas), sendo reunidas no Grande Dragão, ou na Serpente de Sete Cabeças, que é também a última Besta do Mar vista por Daniel (Dn 7). O Dragão de Sete Cabeças, a Besta, representa uma progressão de cinco reinos caídos (ou tronos sobre colinas), um reino vigente (de longa duração) e um reino vindouro (de curta duração), antes do Oitavo Reino, que é a plenitude dos Sete, o somatório de todas as potências régias da Terra, encarnadas no Falso Rei do Mundo, o Anticristo, inverso do Cristo Pantocrator, e seu abate será como a ruína de toda a potestade terrena e a vitória de Jesus por sobre toda a autoridade.

A besta que viste foi e já não é, e há de subir do abismo, e irá à perdição; e os que habitam na terra (cujos nomes não estão escritos no livro da vida, desde a fundação do mundo) se admirarão, vendo a besta que era e já não é, ainda que é. — Ap 17:8

É notável como Apocalipse 17, além de associar a Besta ao Abismo, vincula o símbolo das Águas, que é o próprio Dragão das Sete Cabeças, Trono da Prostituta no meio dos Mares, aos povos do Mundo, entendidos, portanto, como Caos, Tohu e Bohu, sob o governo do Anticristo — a multidão das nações, inimigas do Senhor, enquanto hostes indivisas (unificadas) do Oceano. Notável como os Dez Reis da Terra, dominados desde a Cidade do Mundo, a Prostituta Babilônia, tal qual os Mares de Gênesis 1, estão, n’última instância, sob o domínio do Criador, e o Senhor mesmo instalou em seus corações uma semente de revolta contra o Anticristo, contra o qual se voltarão perto do Fim, destroçando o seu reinado e dividindo os seus espólios, para então, tal como as três primeiras bestas do Mar vistas por Daniel, dominarem “por uma hora”, até que sejam todos abatidos pelo Cavaleiro Branco e suas carnes, carnes de Leviatã, Beemote e Ziz, forem servidas no Banquete Celestial, nas Bodas do Cordeiro (Ap 19). A Nova Criação, que será o Santuário Cósmico da Nova Jerusalém, não terá mais Céu e nem Mar, nem Sol e nem quaisquer Virtudes Celestes, porque a sua Luz será o próprio Senhor, desde o Seu Trono — toda a polaridade terá sido solvida na Unidade de Deus e Ele mesmo, diretamente, vitalizará as Suas criaturas, as quais se alimentarão da Árvore da Vida, que é o Cristo.

O Cristo humanitarista é o Anticristo…

Ditas as coisas nesses termos, não há desvios viáveis à percepção do Cristo humanitarista, na medida em que esse “Cristo” terrestre serve à causa da perenização oceânico-telúrica do Mundo, como sendo o próprio Espírito do Anticristo. É do intento luciferiano o assalto ao Paraíso Celestial e a anulação da dualidade cosmológica pela dissipação do Céu e o predomínio da Terra — essa foi a empresa de Ninrode com Babel. É, portanto, anticristão o empenho em subverter a ordem criacional estabelecida pelo Senhor (Nomos), procurando antecipar, desde esforços nefilinianos, ou titânicos, a unidade plena e hierogâmica do Mundo — só que esse empenho, empreendido desde a Descendência da Serpente, sempre pertencerá ao reino da imanência e dos relativos, que são o inverso lógico do Transcendente e do Absoluto. O Cristo humanitarista é, por conseguinte, o Anticristo, e este virá de fato como um Falso Cristo, ou um Falso Messias, assim que o Katechon for retirado e, removida a Pedra Angular do Mundo, que, Portas do Inferno, está sob a Igreja, eclodirem, desde o Abismo, a Anomia e a Abominação.

É uma lei psicológica, em sentido junguiano, que o desinvestimento de “potência” em um setor da vida psíquica consciente redundará num desvio dessa mesma potência para outro setor, dessa vez inconsciente. O que significa que o esvaziamento do Cristo Salvador enquanto categoria civilizacional, em termos de psique coletiva, gera um recrudescimento e uma densificação da Sombra do Cristo Salvador, que é o Cristo Destruidor, Juiz implacável e Cavaleiro conquistador, que marchará, com Suas hostes, sobre a face da Terra. Em termos mais claros: quando Jesus Cristo, Logos Encarnado, é “pulverizado”, e Sua eficácia salvífica é afastada dos homens, que querem fugir da consciência do Pecado, o espectro de Cristo é lançado à Sombra da “psique” ocidental, e ali atua, enquanto potência subconsciente, como Sombra de Juízo, lançando aos pés dos ímpios vapores ínferos e odores de enxofre, e sendo sentido, sem ser reconhecido, como o próprio Deus da Morte, matriz de severas angústias e desesperos, e de todos os pavores que a consciência pesada, mas obstinada e endurecidas, poderá sentir ao menor sinal do Fim, de maneira que quanto mais perto está o Cristo Salvador, benfeitor dos Filhos de Deus, mais veementes e insuportáveis se tornam os pavores dos Filhos das Trevas, porque sabem que deles se aproxima o Cavaleiro Branco, que é os Quatro Cavaleiros do Apocalipse, e que lhes vêm como Cavaleiro Amarelo. E quanto mais apavorante se tornar o horizonte, mais procurarão se convencer, ao ponto do delírio, de que não haverá Fim algum, para que possam permanecer indefinidamente em suas concupiscências — o Fim se lhes virá, então, como ladrão, tal qual o foi nos dias de Noé.

E haverá sinais no sol e na lua e nas estrelas; e na terra angústia das nações, em perplexidade pelo bramido do mar e das ondas. Homens desmaiando de terror, na expectação das coisas que sobrevirão ao mundo; porquanto as virtudes do céu serão abaladas. E então verão vir o Filho do homem numa nuvem, com poder e grande glória. — Lc 21:25–27

Olhando doutra maneira, seguindo o princípio estabelecido no princípio deste estudo, o esvaziamento de Cristo no Ocidente não é, na realidade, um movimento meramente negativo, de subtração, mas o enchimento proporcional das medidas do Anticristo, já que este é o todo contrário do Cristo, e progride na medida em que Ele “diminui”. O que se terá, no final das contas, não será exatamente uma exclusão do Cristo, mas uma inclusão e o estabelecimento do Anticristo, e quanto mais se pensa excluir o Cristo do espectro diurno e olimpiano da Cultura, para livrar-se o Anticristo e da Parousia, tanto mais se fortalece a presença e o governo do Espírito do Anticristo.

… ele já não aparece sob as formas monstruosas […], mas nas amenidades idílicas […] conhecidas desde a Tentação de Eva.

O que se terá, nesse momento, é uma verdadeira inversão do regime psicológico e espiritual da Cristandade: o Anticristo era o grande vulto ameaçador da Unidade Espiritual Europeia, o repositório de todos os pavores escatológicos, o grande instrumento do Império de Satanás, atuante no submundo e nos capilares dos reinos cristãos — seu vulto crescia quanto mais fortemente se enfatizava a realeza do Deus Filho, Senhor do Universo, e giravam ao redor dele, e de suas hordas de bruxas e diabos, todos os pesadelos e os pavores noturnos. Agora que impera o Espírito do Anticristo, tornado diurno e motivo central da Cultura do Progresso, ele já não aparece sob as formas monstruosas conhecidas pelos cristãos antigos, mas nas amenidades idílicas, aparentemente aprazíveis e muito desejáveis aos ignorantes, conhecidas desde a Tentação de Eva. O inverso do Anticristo é, então, o Senhor Jesus Cristo, e é Ele que hoje povoa os terrores oníricos e inflama as consciências débeis dos Filhos do Diabo, infestando as suas vidas íntimas de toda a sorte de horrores, porque Ele é a Vida para os Seus e a Morte de todos os inimigos de Deus. Sucumbidos em seus corações com a aterradora noção de sua pequeneza, com o ridículo de seus intentos imortalizantes e com a culpa corrosiva do Pecado inescapável, mais denso e atroz na Noite quanto menos vislumbrado no Dia, são pressionados ao arrependimento e à entrega ao Cristo Salvador enquanto há tempo — e até que não o façam, sua miséria crescente, com todas as moléstias do espírito e da mente, serão suas prisões.

Texto de minha autoria (como os demais deste canal) originalmente publicado em meu perfil pessoal do facebook em 21 de Novembro de 2023.

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Natanael Pedro Castoldi
Natanael Pedro Castoldi

Written by Natanael Pedro Castoldi

Psicoterapeuta com formação em teologia básica e leituras em história das religiões e simbolismo. Casado com Gabrielle Castoldi.

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