Da Liberdade Ocidental
o homem de carne e osso no cerne da Realidade
Minogue (2019), em sua defesa do Ocidente tradicional, que é a Europa e a América “maduras”, até o Século XIX e inícios do Século XX, destaca a perspectiva cristã do homem individual, elemento presente no cristianismo, desde o princípio acusado de antissocial, conforme percebido por Minois (2019). A espiritualidade ocidental, inflamada pelos míticos Padres do Deserto, sempre oscilou entre a religião organizada e coletiva, do Templo, e aquela mística, do solitário no claustro e da gruta. Essa índole reflete da e na própria vida cultural de nossa civilização, sobremodo dada aos interesses do indivíduo em sua família e em sua propriedade.
Ao contrário do que comumente se sugere, tal matiz, associada ao que Lewis definiu, noutras palavras, como o caráter mais específico e individualizante da linguagem antiga, deu num arejamento e numa liberdade de espírito muito maiores do que jamais se viu nas culturas orientais, regidas por mecanismos cósmicos estáveis e fatalísticos. Há no cerne do pensamento cristão o entendimento de que é o homem individual que comparecerá diante de Deus para prestar contas de seus pecados e, por conseguinte, é esse mesmo homem individual que insta como a instância mais nuclear e irredutível de toda a sociedade, chegando a ter algum nível de primazia sobre o próprio Estado, que é impessoal e menos sagrado do que a criatura humana — donde as limitações impostas ao Poder Burocrático em suas relações com o indivíduo, tipo de coisa menos nítida no Oriente e em suas estruturas despóticas.
O homem individual é o lócus mínimo da sociedade e também o clímax da Criação
Dessa intuição visceral, de que o homem individual é o lócus mínimo da sociedade e também o clímax da Criação, embebida na vereda socrática da busca individual pelo sentido, que só pode acontecer quando aquele que pensa tem a coragem de pôr em suspenso tudo aquilo que é consensual, a vida e a espiritualidade cristãs seguiram um curso inédito. Respeitando a sua reta consciência e o alcance de seu entendimento, o sujeito, enquanto mantém uma postura de temor reverente àquilo que não entende, mas que lhe é imposto desde cima (daí a formação do estilo conservador, que é prudente), assume para si mesmo apenas as coisas que, dos discursos elevados, fizeram contato com sua interioridade e com o que sabe a respeito de si mesmo. Vou me citar para facilitar:
… a linguagem do homem antigo era bastante pessoal e específica, pouco afeita a generalidades abstratas, de maneira que o discurso sobre o homem só fazia sentido se nutrisse identificações imediatas com aquilo que este sabia, sentia e intuía ao seu próprio respeito.
Ele, afinal, sabia que aquilo que entendia com clareza ser-lhe-ia cobrado de maneira especialmente minuciosa no Juízo Final. Ao que não sabia bem, ou que não entendia, caberia o recurso aos alertas da consciência: se foi imprudente e fez temerária rebelião ou se agiu com cautela, sabendo que, ao se insurgir contra uma demanda do Estado ou da Igreja, ou mesmo de alguma tradição cultural, com suas instituições, poderia estar militando pela destruição de coisas preciosas e importantes, mas que habitavam nas sombras, além de sua capacidade de percepção e de apreensão. Mas havia uma série de coisas que, dentro do organismo civilizacional, se não lhe fosse imperativo combater, pelo menos não era obrigado a aceitar para si, já que não as entendia ou nelas não encontrava significado. Esse espectro de liberdade estava garantido pela própria oposição e tensão entre os poderes da Igreja e do Estado, o Carismático e o Burocrático (PRODI, 2017), que frequentemente se contradiziam e atritavam, sendo obrigados a respeitar suas jurisdições para evitar o conflito direto e também a permitir uma zona de neutralidade entre suas fronteiras. Enquanto cristão, o civil poderia recusar certos arbítrios do Estado. De similar modo, a Igreja não poderia forçá-lo a fazer aquilo que o Estado não regulou como imperativo (a opção por não ser cristão e excluir-se a Comunhão existia, ao fim e ao cabo).
A liberdade, que também era a predisposição do ocidental, de assumir para si aquilo que, do visto e ouvido, fez sentido, é a base da multiplicidade de ordens místicas e monásticas e também dos estilos de vida e mesmo das muitas culturas nacionais que foram se formando na Europa. Sem anular o incompatível, deixando-o viver em seu próprio círculo monástico ou sua própria guilda, o cristão sempre soube congregar com seus pares e assumir um caminho propriamente seu. Noutras palavras: antes de a abstração, do discurso universalista e ideológico, deslocado da realidade das particularidades, ser assumida como um todo e atuar na remodelação do sujeito individual, que se força a encarnar em si a inteireza do ideal, a narrativa abstrata era validada ou não pelo critério da coerência com a essência e a singularidade homem de carne e osso — a realidade imediata, feita de particularidades, julgava o discurso. Afinal de contas, ideias em si mesmas não existem — existem pessoas humanas que as pensam e as armazenam. E existe a Mente de Deus, que é Pessoa, também.
MINOGUE, K. A Mente Servil. São Paulo: É Realizações, 2019.
MONOIS, G. A História da Solidão e dos Solitários. São Paulo: Unesp, 2019.
PRODI, Paolo. Profecia, Utopia, Democracia. In: CACCIARI, Massimo; PRODI, Paolo. Ocidente sem Utopias. Belo Horizonte: Âyiné, 2017.
Texto originalmente publicado em meu perfil pessoal do facebook em 30 de junho de 2021.