De Como Cristo Recebeu em Si as Moléstias do Mundo
Os ritos de expurgo e de purificação
Foi certamente irresistível para os cristãos primitivos a assimilação de Cristo ao Bode Expiatório do Levítico, juntamente com o Seu alinhamento ao Servo Sofredor, sobretudo ao cântico que está em Isaías 53. Ainda que porventura, em termos de doutrina, esteja correta a hipótese de os apóstolos não apregoarem a ideia de Jesus recebendo em Seu Corpo da Morte o montante retroativo dos pecados da humanidade do “tempo da ignorância” (At 17:30), com méritos suficientes para a salvação de uma “plenitude de gentios”, assim como da Israel, no final (Rm 11), este símbolo, maximamente arcaico e de envergadura universal, tão prenhe de poder evocativo, não pôde deixar de ser assumido, no mínimo, como recurso retórico para evangelismo e ensino formal. Eu já apresentei uma porção de passagens em um estudo pormenorizado, de maneira que posso me permitir ir diretamente ao ponto que ora me interessa.
Da mesma maneira que o Bode Expiatório do Iom Kipúr carrega elementos estranhos à estrutura ética e ritual judaica, contendo um resíduo de motivos mágicos primevos, provavelmente de origem sumeriana, ao qual o Senhor conservou, suponho, por seu apelo natural e altamente intuitivo ao entendimento humano e por sua eficácia catártica, a sua transmissão imagética ao núcleo narrativo e doutrinário da Crucificação, da Descida ao Abismo e da Ressurreição (presentes no Credo Apostólico) não deixa de trazer-nos algumas dificuldades — embora as suas primitividade e universalidade, talvez porque traduza uma espécie de verdade fundamental sobre a Criação, tornem tal transmissão justificada e propícia para o caráter cósmico e universal da mensagem cristã. A crença de que se poderia transportar a enfermidade, todo o Mal, para uma coisa ou um animal, identificada com o Bode Expiatório e com o Pombo Ensanguentado do rito de confirmação da cura do leproso (Lv 14:3–7), e que a soltura do Bode e do Pombo para o ermo representaria o carregamento de toda a maldade para o Abismo, acompanha ritos curativos de purificação que nos são melhor conhecidos e mais palatáveis, como as lavagens em Água Vida, ou corrente, para o restabelecimento espiritual — nos termos das sujidades do Pecado — e corporal — nos termos das doenças físicas. O Bode Expiatório, escolhido por sorteio — portanto, inocente -, o Pombo e a Água são aqui, pois, veículos puros cujas virtudes os capacitam para a absorção e o transporte para “longe” de toda a imperfeição.
… veículos puros cujas virtudes os capacitam para a absorção e o transporte de toda a imperfeição.
Por uma razão tal é que as águas curativas como as do Tanque de Betesda eram substituídas recorrentemente, uma vez as mesmas águas que já haviam “absorvido” os males de um certo número de pessoas se tornavam impuras e ineficazes, precisando ser removidas e substituídas por outras. As águas “usadas”, liberadas pelos ralos, transportavam consigo toda a imundícia, levando-a embora. Similarmente, as próprias vestes brancas do sumo sacerdote, as duas mudas que ele usava no Iom Kipúr, eram descartadas depois dos serviços. Nas aldeias medievais, especificamente o bode era identificado com um receptáculo ou absorsor de todas as influências malignas que poderiam recair sobre a comunidade, tornando-se crescentemente fedorento e peludo como sinal do aumento de sua imundícia em decorrência das sujidades que atraiu para si, sendo determinada a sua morte como o atingimento do limite de sua capacidade de suportar cargas de Mal, sendo imediatamente substituído por um animal jovem e ainda limpo.
Nos sistemas de cura ancestrais, pelas razões acima referidas, era comum que o oficiante da cura fosse encontrado em um estado ritualmente puro, que se aproximasse do enfermo ainda em jejum ou recém-lavado, isto é: submetido a purificações especiais e preparações espirituais e mentais. Ele deveria estar em uma condição de pureza e das virtudes nasciturais reabilitadas, porque era esperado que a moléstia da vítima, para que saísse de seu corpo, fosse imediatamente absorvida pelo corpo do curador, que era mais capaz de suportá-la dada a sua pureza e virtude. As qualidades especiais do curador, quanto mais santo fosse, criavam um ambiente sobremaneira hostil para a sobrevivência do Mal, incluso o Demônio, ao ponto de suprimi-lo ou de expurgá-lo para paragens longínquas. Daí a correlação entre uma condição ideal de Perfeição e uma capacidade de absorção do Mal que não culmina exatamente na perda das virtudes benévolas do santo, em um sentido ontológico, mas na própria supressão do Mal, incapaz de sobreviver e de crescer em um corpo Bom e de derrubar uma mente preparada. Evidentemente, a saúde do curador é, via de regra, boa e forte o suficiente para aprisionar o Mal pelo tempo necessário até uma segunda purificação — neste caso, o curador atua como um veículo ou intermediário, com a virtude de transportar o Mal para o lugar da sua dissipação. Assim, ele fica como que enfermo em substituição à vítima original, e a doença que porta não é a sua própria doença, mas a doença daquela, até despejá-la no seu devido território. Enquanto isso, por superar dentro si uma moléstia que não é propriamente sua e sobre a qual detém o domínio através de virtudes e méritos, a retém como sua prisioneira, de maneira que quase podemos dizer que ela é que sofre dele, não o contrário.
… ele fica como que enfermo em substituição à vítima original, e a doença que porta não é a sua própria doença…
Não se pode negar como essa economia sagrada ligada aos expurgos e às purificações é apelativa para o entendimento da Morte, da Descida e da Ressurreição de Cristo. Observe-se, todavia, como em Seu ministério Jesus, efetivamente em missão de qualidade profética, não precisou purificar-Se nem antes e nem depois de todas as curas e de todos os exorcismos que realizou, sendo capaz de comandar, apenas com o poder da Sua Palavra, a retirada dos males e dos diabos de suas vítimas para o exílio nas “terras áridas”. Ainda assim, as aplicações de Isaías 53 ao Seu Sacrifício e os modos de os apóstolos argumentarem a respeito dos efeitos de Sua Morte (1 Pe 1:19; Cl 2:14) nos conduzem ao entendimento de como o Seu desamparo na Cruz (Mt 27:46) corresponde a uma espécie de absorção, em Seu Santo Corpo, de todo o Mal, donde a instantânea ressurreição de mártires no mesmo instante da Sua Morte (Mt 27:52–53); Mal este que transportou consigo para o Abismo não porque tivesse se tornado Ele mesmo o Mal, mas por poder suportá-lo em Si e contê-lo, primeiro, até a Sua chegada ao Reino da Morte. Tirando o “Pecado do Mundo” (Jo 1:29), o levou para o Inferno, onde também superou e amordaçou a Antiga Serpente pelo tempo da Era, após a qual a exterminará, assim como o Mal per se — pela Serpente simbolizado -, com o Seu Fogo de Juízo (Ap 20:1–3 e 10–15).
Texto de minha autoria (como os demais deste canal) originalmente publicado em meu perfil pessoal do facebook em 26 de outubro de 2024.