Evangelho e Mito
Acréscimos inacabados ao estudo anterior
Imaginemos, a partir do dito anteriormente, o alastramento assombroso da Igreja nas primeiras décadas após o Ministério de Cristo, tanto através da Diáspora, que espalhou muitos conversos judeus nos principais centros da bacia do Mediterrâneo, porção substancial dos três mil do Pentecostes, quanto dos ministérios apostólicos, sobretudo as viagens missionárias de Paulo, que articulava uma ampla rede de contatos. O cristianismo progride entre os gentios de maneira surpreendente e igrejas são iniciadas por muitos novos convertidos, que principiam a Obra em cidades nas quais não há outros cristãos, atingindo uma classe culta, amplamente implicada na vida pública, mas principalmente a plebe — as insulae romanas eram os principais núcleos populares de irradiação da Fé. Todo o contexto cultural desse espalhamento do cristianismo é um emaranhado de superstições, de filosofias, de doutrinas mágicas e fés de massa, assim como fés de mistério, e tende naturalmente ao espetacular, ao carismático e ao milagroso, segundo as inclinações e as reminiscências do paganismo clássico e de suas popularizações e sincretismos, via de regra altamente individualistas. Não é sem razão que Paulo enfrentou precoces infiltrações pagãs e judaizantes em muitas de suas igrejas — esse fenômeno deveria ser abrangente, quase generalizado, no período inicial de dispersão e semeadura do cristianismo primitivo.
… muitas igrejas não tinham clareza adequada a respeito de suas origens, exceto aquela da transmissão horizontal…
Não havia ainda um cânon bem fixado, até porque ele estava sendo escrito, mas havia um determinado padrão culto, tanto na organização do espaço interno do templo (mesmo se uma sala da casa de alguém), quanto na liturgia, comum à maioria das congregações — porque o cristianismo se disseminou, como outras religiões de seu tempo, como um estilo de culto, conforme uma tradição originária e entregue pelo novo Deus aos Seus enviados. Todavia, a Sã Doutrina apostólica não conseguia se impor sempre e em primeiro lugar num movimento de crescimento tão orgânico e tão acelerado, e, embora epístolas como as de Paulo circulassem amplamente, certamente não chegavam a todos os lugares e evidentemente não conseguiam penetrar fundo o suficiente em todas as congregações, instaladas desde o princípio em desvios e impregnadas de sincretismo. Ainda assim, é notável como a forma dos santuários e a forma do culto parecem conservar um padrão originário, segundo a Tradição — o que torna a questão até mais interessante, porque deixa entendido que muitas igrejas, conquanto seguissem esses padrões, não tinham clareza adequada a respeito de suas origens, exceto aquela da transmissão horizontal, nas terminações mais tênues da Tradição, e acabavam aderindo a especulações diversas, a falsos relatos e falsos ensinos a respeito do Cristo e de Sua Doutrina para preencher esses vazios de entendimento e dar uma melhor direção aos seus cultos. Essas igrejas também não tinham uma noção clara de qual o seu lugar dentro da Fé, de como as coisas se desenvolveram até o seu próprio momento, além da já supracitada incompreensão sobre as origens de alguns de seus principais atos cúlticos e hábitos litúrgicos, perigosamente justificados ou explicados de outras maneiras. Elas precisaram, portanto, de uma História Sagrada para saírem da imersão excessiva na atemporalidade e no local, características de fés populares, mágicas e individualistas, e para que se conectassem aos principais centros da Fé e aos seus Patriarcas e sua Doutrina.
… uma história das origens é mais importante do que uma explicação lógica da Doutrina…
Por essa razão, a redação dos Evangelhos e dos Atos dos Apóstolos, principiada com Marcos no início dos anos 50 d.C., foi recebida por muitas igrejas do tempo primitivo, uma vez que a recepção foi posterior à fundação de várias dessas igrejas, como uma elucidação ou um esclarecimento sobre as origens e as razões de todos os elementos de sua liturgia e de seus hábitos singulares — foram-lhes, pois, como que explicações para o que já tinham, mas que não compreendiam bem. Em termos de Literatura Sagrada, que é principalmente Mito, uma história das origens é mais importante do que uma explicação lógica da Doutrina, pois é o pressuposto da própria Doutrina, na medida em que se coloca como sua fonte de autoridade — o conhecimento do nascedouro das práticas e das Doutrinas traz consigo o conhecimento de Seu originador e de como Ele as fez ou originou, e do porquê, enfim, as coisas são feitas e ditas das estereotipadas formas herdadas. É provável que Teófilo, quando encomendou a Lucas a organização dos fatos referentes à origem d’O Caminho, estivesse interessado em compreender melhor aquilo que vira, talvez até do que participara, mas que não soubera justificar suficientemente bem.
Estranhamente, portanto, os Evangelhos, no seu contexto imediato, não vêm para fundar ou estabelecer a vida da Igreja, mas para explicar e elucidar aquilo que as igrejas já viviam e faziam, mas que viviam e faziam sem compreensão clara e com tendências desviantes e sincréticas. E vêm também para alimentar, principalmente com os Atos, a autoimagem da Igreja Universal, nutrindo um senso de pertencimento em todas as igrejas locais, que conseguem rastrear suas próprias origens e entender melhor as suas vocações.
Texto de minha autoria (como os demais deste canal) originalmente publicado em meu perfil pessoal do facebook em 27 de fevereiro de 2024.