Israel e a Criação da História

o Povo de El no palco do Mundo

Natanael Pedro Castoldi
9 min readMay 16, 2021
Moses on Mount Sinai, Jean-Léon Gérôme

O principal fator que colocou Israel na condição de “criador da História” foi a reabilitação abraâmica do culto a El, Deus Criador e Todo-Transcendente. É claro que, como expliquei em texto publicado ontem aqui no Medium, a quebra do Tempo Cíclico nas sociedades cosmológicas começou já na Suméria, com o destacamento da figura do rei enquanto servo da divindade, não face encarnada da mesma, donde o esclarecimento da distinção entre Adorador-Divindade, Mundo-Criador, Imanência-Transcendência (Voegelin [HUGHES, 2019] coloca um dos primeiros exemplos de historiogênese também na Suméria, onde se estabelece certa linearidade histórica a partir da sucessão de reis desde um início divino [o motivo disso residia na atribuição de sentido, de predestinação aos sumerianos enquanto Império]). Ainda assim, nesses casos, o Tempo Cíclico, de apelo eminentemente popular, exercia pressão muito maior sobre a sociedade do que do Tempo Linear, das elites palacianas e sacerdotais. A ruptura axiológica só começará, de fato, em Israel, com a superação quase total do Tempo Cíclico, que é cosmológico.

É pertinente que compreendamos aqui a condição especial do povo hebreu: Abraão, de família rica e bem instruído, saiu de Ur, uma cidade muito antiga (6000 a.C.) e considerada, desde seus vestígios arqueológicos, mais majestosa do que a Babilônia (KELLER, 2008). A respeito de Abraão, Woolley, famoso arqueólogo, afirmou: “Era cidadão de uma grande cidade e herdou a tradição de uma civilização antiga e muito bem organizada.” O próprio Abraão, contudo, toma por terra natal de sua família Najor, na Mesopotâmia setentrional. De todo o modo, no tempo aproximado do nascimento de Abraão, em 2000 a.C., houve uma grande invasão de tribos de nômades semitas provenientes da Arábia na Mesopotâmia, atingindo primeiro o Sul, em Ur, donde podemos conjecturar que a família de Abraão, semítica, não estava assentada há muitas gerações em Ur, tendo saído de Najor, para onde foi no período da Invasão. Devemos ressaltar que os sumérios nativos não eram semitas. Isso significa duas coisas: junto dos semitas nômades, subiu à Mesopotâmia El, divindade transcendente e consideravelmente desvinculada dos ciclos agrícolas, típicos dos habitantes das terras férteis junto ao Eufrates, e em Ur, magnífica cidade, os adoradores de El, henoteístas que se fizeram idólatras, tiveram acesso a um nível cultural da maior sofisticação — suponho que a historiogênese apareceu entre os Sumérios sob influência dos semitas, que, tendo dominado muitas cidades, estabeleceram sua influência a partir de cima, enquanto elite governante. Quando Abraão é chamado pelo Único Deus, ele não está descobrindo algo novo, mas sendo convocado a abandonar a idolatria e a retornar ao nomadismo de seus antepassados — fora do complexo das cidades mesopotâmicas, o estilo de vida patriarcal e vinculado a El se tornou mais viável. E foi mesmo longe, em Canaã, que o lendário adorador de El, Melquisedeque, foi encontrado por Abraão.

O povo hebreu, por conseguinte, foi fundado sob a sombra de um homem que esteve no coração do mundo civilizado, altamente culto e nobre (considere que os semitas se tornaram a elite na Suméria), mas que vinha de um povo nômade, adorador de El. O retorno ao nomadismo patriarcal fortaleceu o culto a El, que foi reassimilado na Sua condição de Deus dos Pais, Deus da Família, Deus do Clã. Quando os filhos de Abraão estiveram no Egito por séculos sob os cuidados da dinastia faraônica dos semitas, dos Povos do Mar, conquanto muitos tenham se paganizado, manteve-se um núcleo básico do culto a El, que Moisés, príncipe na casa de Faraó nas dinastias subsequentes àquela dos invasores e, portanto, inimigas dos hebreus, pôde reabilitar. Moisés é considerado o criador do alfabeto hebraico em sua forma clássica, o que é provável, visto ter precisado escrever o substrato mais profundo da Torá. A capacidade linguística de Moisés faz sentido, já que esteve na corte de Faraó sendo ensinado e tendo acesso a pergaminhos e rolos em hieróglifo, cuneiforme e, talvez, nos rudimentos do que veio a ser o hebraico, provavelmente escritos de semitas cananeus, conforme evidências encontradas no Sinai e datadas de cerca de 1500 a.C., o período de Moisés. Vale lembrar que Abraão esteve cercado de cananeus em seu período na Palestina.

Quando, sob liderança de Moisés e pelo favor de El, a corte egípcia é punida, o povo egípcio sofre com as Dez Pragas e os hebreus presenciam o colapso do sistema de vida e fé cosmológico do Egito (talvez tenha sido esse colapso do Cosmos e a influência semítica que tenham levado, cerca de um século depois, o faraó Aquenáton a propor um tipo de monoteísmo no Egito, baseado em Aton [o empreendimento fracassou porque a poderosa elite sacerdotal dos templos diversos se articulou enquanto oposição]), e, enquanto Povo, realizam a sua Passagem, o seu batismo pelo Mar, temos o nascimento da História Sagrada. Nas culturas cosmológicas, o homem era basicamente um espectador das movimentações e das ações dos deuses, que recheavam o mundo ao seu redor, tomando-o como palco. El, contudo, é transcendente e, portanto, não confundido com o mundo, de maneira que o mundo é desmitificado e dessacralizado e as manifestações divinas são eventos, penetrações imanentes do poder e da intenção do Deus Transcendente em favor de seus adoradores. Isso significa que, ao invés de espectador dos ciclos cósmicos, o Povo, que recebe o favor de El, percebe a si mesmo enquanto um ator, uma personagem ativa no palco do mundo, e que está em marcha linear, dentro do tempo e do espaço, em direção à realização da Promessa, que é a retomada da Herança de Abraão em Canaã e o estabelecimento do Povo de Deus como nação autônoma. Israel, portanto, enquanto nômade no Êxodo, desvinculou-se inteiramente dos ciclos agrícolas, visto não estar fixado na terra, mas vagando em terra alheia, nos desertos, e percebeu a si mesmo na figura de realizador ou instrumento da vontade de El — o tempo passou a ser percebido da perspectiva histórica das manifestações de El, como no Mar Vermelho, e não mais como o ciclo interminável de fenômenos anímicos. A tomada de Jericó é a expressão mais clara dessa nova mentalidade.

E foi no meio da aridez mineral do Sinai, longe de tudo e de todos, que os hebreus foram batizados nas labaredas do Horebe. Martins Terra (2015) negou que Javé, ali manifestado, fosse uma divindade vulcânica dos beduínos da região, conforme alegado por Gunneweg (2017). Javé parece ter vindo de “Yahwe-El”, que é “El faz ser”, “El cria”, e vem como um nome mais afetuoso e pessoal para El, que foi sendo percebido mais claramente enquanto Javé na medida em que Israel foi se afastando de traços residuais do politeísmo semítico, que inseriu El num panteão. A associação entre El e uma Montanha Santa aparece, na verdade, muito antes de Êxodo, em Gênesis 17, quando Deus fala de Si como El Shaddai. Shaddai vem do acádio Shadu, que é Montanha, donde “El Montanhês”, donde não ser estranho aos hebreus que o Javé do Sinai fosse o El que já conheciam. Outra interpretação buscará a origem do termo não no acádio, mas no semítico norte ocidental, donde se pode associar shadday com “estepe” — a alteração de um pequeno sinal na palavra aparece em ugarítico como “campo”, donde teríamos algo como “Senhor da Estepe”, herança da origem nomádica dos hebreus. A breve discussão acima serve para consolidar o entendimento de que a experiência de Israel no Êxodo não teve traços animistas, nem influências pagãs — Javé é a recuperação do caráter pessoal, relacional e intenso de El, conforme sentido pelos Patriarcas, para os quais Ele era o Deus dos Pais. Conforme Martins Terra, o Deus dos Pais nada tinha com divindades atmosféricas cananitas, como Baal (que, inclusive, castrou El na mitologia cananéia), mas era El mesmo, sentido como Deus do Pai, do Indivíduo, e também do Clã.

A singularidade de Israel enquanto Povo de El aparece na arqueologia também no período relativo ao final do Êxodo, que é o da Conquista da Terra Prometida. Ali vemos traços claros de um monoteísmo estrito, bem diferente dos politeísmos de Canaã, com seus povos semitas pagãos, habitantes das planícies férteis dalém do Jordão, apinhadas de pequenas cidades muradas, refúgios dos sedentários contra pastores nômades e seminômades. Por volta de 1200 a.C. houve um “boom” de diminutas aldeias nas Terras Altas da Palestina, nas colinas acima do Jordão, ao Oriente. Essas aldeias cobrem toda a parte montanhosa entre a Galileia e o Mar Morto a oeste do rio: 250 aldeias — todas aparecendo entre 1150–900 a.C. — e uma população estimada em 45 mil pessoas, que atingiu cerca de 160 mil em 500 sítios — com algumas cidades maiores — por volta do séc. VIII a.C., após o Reino Unificado de Davi e de Salomão. Tais assentamentos, embora igualmente semíticos, apresentam caracteres distintivos das demais aldeias e cidades, sobretudo das planícies (FINKELSTEIN; SILBERMAN, 2018):

Os túmulos eram simplórios e seus mortos não recebiam oferendas, quase não há indícios de culto e de santuários

  • Eram diminutos, com a maioria abrangendo um acre de terra e acolhendo cem pessoas, entre adultos e crianças;
  • Eminentemente pastoris, localizavam-se em áreas próximas de boas pastagens e em vales que davam acesso aos campos agrícolas;
  • Não possuíam prédios públicos, nem templos, tampouco palácios e armazéns, indicando, além de pobreza material, uma organização política e religiosa singulares;
  • Apresentavam um certo igualitarismo entre os moradores, confirmado na quase ausência de utensílios de luxo, de cerâmicas importadas (a cerâmica local era básica e rudimentar) ou jóias, e as casas eram feitas de pedras brutas, colhidas nas encostas, com pilares toscos que davam sustentação a, normalmente, um pavimento superior, dando em casas para cerca de seis pessoas;
  • A religião era ritualmente bastante simples e desburocratizada: os túmulos eram simplórios e seus mortos não recebiam oferendas, quase não há indícios de culto e de santuários. Achou-se uma única estatueta de um touro — “… é provável que El fosse um deus criador na antiga Canaã. Em todo caso, era o senhor do mundo, e era com esse título que recebia o epíteto de Touro, que o caracteriza, talvez, como progenitor e como poderoso.” — Martins Terra, p. 161;
  • Esses povoados não eram fortificados e nem militarizados, talvez porque contassem com a proteção natural das montanhas;
  • Os primeiros sítios israelitas nas Terras Altas seguiam o modelo dos acampamentos dos beduínos do deserto: as casas de pedra, substituindo as tendas, partilhavam das mesmas paredes externas e formavam uma espécie de anel, de cinturão, no centro do qual os rebanhos eram guardados à noite. Esses rebanhos eram constituídos de ovelhas e de cabras, com quase nenhuma vaca, conforme o esperado de pastores de origem seminômade;
  • Não são encontrados ossos de porcos. Porcos foram criados e consumidos nos assentamentos anteriores aos de 1200 a.C. e eram parte da dieta nas cidades das planícies, mas inexistiram entre os israelitas nos 250 assentamentos do período, sendo quase impossíveis de encontrar em todos os 500 até depois de Salomão;
  • A localização da maior parte desses assentamentos, após o Jordão e de frente para a planície cananita e suas cidades mercantes e agrícolas, cujos mercados consumiram a carne dos pastores e os campos produtivos puderam ser utilizados pelos rebanhos, além de fornecerem aos israelitas quantidades de grãos que não conseguiam produzir, destaca os interesses dos “invasores” em descer para o Oeste e justifica as incursões e destruições que realizaram nas cidades dos cananeus;
  • A qualidade guerreira dos hebreus está clara nas evidências da feroz destruição de Ai, Hazor e Jericó (PRICE, 2016).

Podemos concluir, portanto, que uma nova cultura apareceu de súbito no Oeste da Palestina, trazendo consigo costumes seminômades do deserto, incluindo o não consumo de carne de porco, e uma religião desprovida de imagens, sem templos e nem altares. Esse novo povo demonstra sua “novidade” pela ainda reduzida complexidade social e material, além de indicar, tal como na sua súbita chegada, intenções de descer e de dominar as planícies abaixo, como os hebreus realmente fizeram por volta da mesma época (1200 a.C.). Esse parece um fenômeno muito singular e específico para não ser considerado: a qualidade “vagante” desse povo das Terras Altas é compatível com a autoimagem de Israel enquanto ator no palco do Mundo e dentro da História.

FINKELSTEIN, Israel; SILBERMAN, Neil A. A Bíblia Desenterrada. Petrópolis, RJ: Vozes, 2018.

GUNNEWEG, A. H. J. Teologia Bíblica do Antigo Testamento. São Paulo: Loyola, 2017.

HUGHES, Glenn. Transcendência e História. Curitiba: Danúbio, 2019.

KELLER, Werner. Arqueologia da Bíblia, Dos patriarcas ao umbral da Terra Prometida. Barcelona: 2008.

PRICE, Randall. Pedras que Clamam. Rio de Janeiro: CPAD, 2016.

TERRA, João E. M. O Deus dos Semitas. São Paulo: Loyola, 2015.

Texto de Natanael Pedro Castoldi redigido para este perfil em 16 de maio de 2021.

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Written by Natanael Pedro Castoldi

Psicoterapeuta com formação em teologia básica e leituras em história das religiões e simbolismo. Casado com Gabrielle Castoldi.

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