Os Santos Julgarão o Mundo
Adições aos estudos anteriores
Ainda ao redor de 1 Coríntios 6 e da argumentação do apóstolo Paulo no capítulo 2 da epístola, a de que os perfeitos (iniciados nos mistérios de Deus em Cristo) julgam todas as coisas, mas não são julgados por ninguém, assumo por relevante um acréscimo de Michel Remaud (Evangelho e Tradição Rabínica): parece-lhe evidente que a questão do sexto capítulo (“Ousa algum de vós, tendo algum negócio contra outro, ir a juízo perante os injustos, e não perante os santos?”) assume largas bases no Midrash, sobretudo o Midrash Tannaim de Deuteronômio 16:18.
Segundo o comentarista do Deuteronômio, a estrutura do texto torna evidente que retos juízes são exclusivamente israelitas, porque só a eles foi dada a Sabedoria pela Lei de Deus, de maneira que a busca por juízes gentílicos é como uma violação da Aliança, chegando às raias da idolatria. Isso se dá no próprio texto, que associa, um versículo após o outro (20 e 21), a busca pela Justiça à rejeição da Idolatria — proíbe-se a instalação do “poste-ídolo” (‘asherah) de Aserá junto dos altares a YHWH. A ponte para esse raciocínio é o jogo linguístico que se vê no hebraico, instalado nos versículos 19 e 21: “Não torcerás [lo’tatté] o juízo” e “Não plantarás [lô’titta] nenhuma árvore junto ao altar”.
… o reconhecimento da autoridade dos tribunais pagãos é um reconhecimento da legitimidade dos falsos deuses…
Deve-se somar a essa tradição o comentário de Rachi a Êxodo 21:1, que entende terem sido postas as leis diante dos israelitas, não dos pagãos. A compreensão de Rachi é a de que, mesmo quando o juízo dos gentios possa ser objetivamente correto, um israelita recorrer ao tribunal pagão é profanador ao Nome, porque demonstra apreço pelo objeto da idolatria ímpia, uma vez que esse ato não é menos do que uma afirmação da legitimidade da jurisdição dos idólatras, regida, n’última instância, pelos seus deuses, que manifestam seu poder através dos seus juízes. O comentarista acrescenta ao argumento Deuteronômio 32:31, também presente no Midrash de Deuteronômio 16: “Pois o rochedo deles não é como nosso rochedo para que nossos inimigos nos julguem!”. Nesse contexto, a Rocha de Israel é YHWH, enquanto a rocha dos inimigos de Israel é sua pretensa divindade. Aliado ao Midrash Tannaim, se apreende que o reconhecimento da autoridade dos tribunais pagãos é um reconhecimento da legitimidade dos falsos deuses, neles manifestados, de modo que, como o Midrash esclarece, as leis dos pagãos são essencialmente más — o sintoma disso é a sua frouxidão, por assim dizer, que é incapaz de conservar o homem são (a ideia de que as leis de Israel são melhores por serem muito mais exigentes é comparada ao bom médico, que impõe austero regime restaurador ao seu paciente [aqui está implícita a percepção da Queda e da necessidade humana de retificação]).
Uma terceira fonte, a Mekhilta de Rabi-Ishmael, retomada por Rachi no comentário de Êxodo 21:1, é de especial relevância: ela busca um fundamento na Escritura para a instalação do Sinédrio na proximidade do Altar, o que no tempo Pós-Exílico aparecia na presença do Sinédrio nas instalações do Templo. A Mekhilta encontra um nexo entre o final de Êxodo 20 e o início de Êxodo 21: vai-se da diretriz para a construção dos altares — em pedras brutas, não lavradas, e sem escadaria (para evitar a “nudez”) — para “Estes são os estatutos…”. Rachi escreve assim: “Para que não se descubra a tua nudez. Eis as leis que lhes proporás”, daí deduzindo o imperativo de o Sinédrio estar junto do Altar. Por óbvio, a Justiça jamais poderia estar próxima do altar pagão — que é a sentença do Talmude da Babilônia ao redor de Êxodo 21:1: as leis estão diante dos israelitas, não dos pagãos.
… Israel tinha dentro de si os únicos juízes legítimos…
Segundo G. K. Beale e D. A. Carson (Comentário do Uso do Antigo Testamento no Novo Testamento), Paulo, ao extrair fontes na Torá e em veterotestamentários correlatos para a organização de “juízes” cristãos e intraeclesiásticos, está assumindo ser a Igreja a legítima Nova Israel, ou a herdeira direta e verdadeira da Lei — da Lei vislumbrada desde a revelação do Eschatos, o Mistério de Deus, o Cristo, que lhe dá a forma final e perfeita. Quando os cristãos desprezam essa herança, também põem abaixo o significado da Promessa, dada escatologicamente, porque serão eles os juízes da Terra, sobretudo dos pagãos, e inclusive dos anjos, como está dado no próprio 1 Coríntios 6. E se Israel tinha dentro de si os únicos juízes legítimos, para julgar corretamente os israelitas e atrair para dentro de si as nações do Mundo, desejosas de seus tribunais justos e da Sabedoria instalada em Sião, a Igreja tem dentro de si o gérmen da Nova Criação e o seu julgamento é um julgamento cósmico, universal, sobretudo dirigido às nações do Mundo — é centrífugo, não centrípeto. Naturalmente, esse julgamento cósmico está por acontecer e o será no Dia do Senhor, ou na Vinda.
A questão do julgamento dos anjos é especialmente interessante. Uma vez que os perfeitos discernem e julgam “todas as coisas” (1 Co 2:15), porque conhecem todas as coisas do Espírito de Deus, e se esse conhecimento, que é intelectivo e espiritual, tem relação com domínio, os próprios anjos devem estar inclusos. Aparentemente, Paulo extraiu essa ideia do Salmo 8:5, utilizado em 1 Coríntios 15: 27, donde o verdadeiro destino dos que estão em Cristo é habitar, inclusive, acima dos anjos — embora Hebreus 2:7 deixe claro que o homem não está apenas abaixo de Deus, mas um pouco abaixo dos anjos. Como Paulo também puxa algo de Daniel, deveremos encontrar uma solução em Daniel 7:18: compartilhar o Reino é igualmente compartilhar a autoridade. Nesse sentido, a superioridade dos perfeitos é principalmente jurídica, como coparticipantes da divindade.
Não devemos ignorar, contudo, a possibilidade de o apóstolo Paulo não ter extraído essa doutrina inteiramente dessas parcas passagens, uma vez que a literatura escatológica por ele conhecida já a apresentava, como é o caso da Lenda Hebraica de Melquisedeque, encontrada em Qumran — se Paulo é o autor de Hebreus, o acesso a esse material parece inequívoco. Todavia, nesse documento qumrânico é Melquisedeque aquele que julga os anjos, chamados “santos”. A discussão que resta é a de se esses anjos que serão julgados são os anjos caídos — o que me parece altamente provável, tendo em vista que o seu destino, o Lago de Fogo, será o mesmo destino dos ímpios.
Texto de minha autoria (como os demais deste canal) originalmente publicado em meu perfil pessoal do facebook em 19 de setembro de 2023.