Sobre a Batalha Escatológica, o Milênio e a Vitória de Cristo
Uma sobreposição de Gênesis e Apocalipse
Conforme entendido em Leo Strauss, a visão judaica da História, sendo teleológica e finalista, impõe o Fim sobre o Começo — a Escatologia é uma replicação da Cosmogonia, no sentido da reversão de seus efeitos, ou duma inversão de sua ordem para o estabelecimento da Nova Criação. Disso, pois, a Nova Jerusalém, instalada no Monte Santo, ser uma restauração do Éden, assentado desde o rebaixamento das Águas do Oceano Primordial na Montanha Sagrada. Nesse sentido, como já vimos, o Éden, no topo do Monte Santo, se confunde com o Templo Celestial, o local do Trono de Deus, apresentando uma natureza mais arquetípica do que concretista. Donde a tradição judaica ter inserido o Éden em Sião e definido que o Dilúvio não pôde atingi-lo. Uma vez que não estamos falando de um jardim literal, mas da infraestrutura prototípica do Cosmos, o que está claro na imagem dos Quatro Rios, não há contradição no fato de o Éden não ter sido divisado objetivamente no topo de Moriá. Enquanto Axis Mundi, o topo do Monte Santo de Sião é o lócus visionário do Espaço Sagrado e do Tempo Forte, desde o qual se pode Ver o Paraíso Celestial e o Trono de Deus, ou a Nova Jerusalém, o Éden Eterno, transbordante de pedras preciosas, não separado especial e temporalmente do cume do Monte, porque se refere à esfera do Espírito — o Santíssimo, dentro do Templo de Salomão, é esse portal para o Um Dia, para a congregação angelical que está diante do Trono Divino, no Aravot. A Arca da Aliança, que é o Trono do Deus Invisível, estaria depositava diretamente no nexo cosmológico entre o Terceiro Céu e o Submundo, pois a Pedra Angular da Terra (assim Cristo, o Messias, foi chamado), o seu pedestal, ia do topo de Moriá, no qual a Arca estava assentada, e descia até o Inferno, até onde as Águas do Oceano Primitivo foram por ela seladas. A descida escatológica da Nova Jerusalém é, pois, a imposição do arquetípico e celestial por sobre o ectípico e terrestre — o retorno à Luz Una da Glória Eterna de Deus após o regresso ao Caos Primevo, simbolizado pela remoção diluviana da Pedra Angular.
… o Santíssimo, dentro do Templo de Salomão, é esse portal para o Um Dia…
O símbolo do Milênio é relevante para que se pense a ruptura desse limiar, ou a remoção dos Limites, “Efes”, do Oceano e do Caos Primitivo — ou seja, a Antiga Serpente do Mar, Leviatã, ou Satã, é libertada de sua prisão de Mil Anos para poder voltar a perturbar comunidade da Aliança. A Serpente do Mar terá, pois, permissão para insuflar todos os reis da Terra contra o Povo de Deus e os reunirá enquanto um grande exército, numeroso como a areia do mar, apenas para ser destruída, ela e seus exércitos, pelo Senhor, e servidas as suas carnes, que são as carnes dos inimigos de Deus, no grande Banquete Escatológico das Bodas do Cordeiro:
Naquele dia o SENHOR castigará com a sua dura espada, grande e forte, o leviatã, serpente veloz, e o leviatã, a serpente tortuosa, e matará o dragão, que está no mar. Naquele dia haverá uma vinha de vinho tinto; cantai-lhe. — Is 27:1 (inclua-se Is 24:21–22 e Ap 19:11–21)
O Milênio pode ser compreendido, nesse contexto, como o tempo transcorrido na Era Cristã, a Era de Peixes, ou a Era da Igreja, porque durante ela está derrubada a Antiga Serpente, não no sentido de estar inativa, mas de não possuir poder e autoridade para impedir o avanço do Evangelho sobre toda a Terra, uma vez que não possui mais o domínio sobre os povos do Mundo da maneira que possuíra no tempo Antigo, aprisionados que estavam dentro dos sistemas demoníacos do paganismo. É isso que o apóstolo Paulo demonstra compreender em sua pregação aos atenienses, que está em Atos 17, pois ali ele afirma que a Elevação e a Ressurreição do Filho de Deus é Eschatos, ou Revelação do Deus Desconhecido, disponível ao entendimento também dos gentios, porque as escamas de seus olhos caíram e já não estão imersos nas trevas do entendimento. Assim, nos Tempos do Fim, ou no Tempo Que Resta, não há fronteiras intransponíveis para os cristãos — isso insta na Grande Comissão de Mateus 28 e no simbolismo do final de Marcos 16, bem demonstrado nos eventos que se desenrolaram na visita de Paulo aos pagãos de Malta, apresentados por Lucas nos capítulos finais de Atos.
O sistema de trevas global da Era não pôde suprimir o avanço do Reino Messiânico…
Esse período de Mil Anos não corresponde ao tempo literal de um milênio, mas ao tempo de uma Era. O sistema de trevas global da Era não pôde suprimir o avanço do Reino Messiânico, o que significa que o sistema de trevas do Mundo, durante esse tempo, embora guardasse o espírito do Anticristo, nada pôde contra a Igreja, porque o Anticristo estivera contido, retido pelo Katechon (2 Ts 2:6–7), de modo que imperou, não o sistema do Anticristo, mas um princípio civilizacional cristão legítimo, o qual perdurou, ou perdurará até ser atingida a “medida dos gentios”.
A medida de tempo do Reino Messiânico, anterior à derradeira batalha cósmica escatológica, foi estipulada por rabinos em faixas que variam de 40 a 365 mil anos, com dois rabinos tendo cogitado a medida de Mil Anos, dentre os quais Eliézer ben Hircano (90 d.C.), a partir de tradições rabínicas mais antigas, tal como a samaritana. O Livro dos Jubileus apresenta essa tradição milenária como baseada em Isaías 65:22: “Os dias do meu povo serão como os dias da árvore da vida”. O autor assume a medida ideal da vida de Adão no Éden, com o acesso à Árvore da Vida, dentro de “um dia celestial” (Sl 90:4), que é calculado em um mil anos, e, com base nisso, demonstra que Adão pecou no Primeiro Dia, não tendo completado os anos desse dia, pois ele morreu faltando setenta anos para os mil. Segundo o Jubileus, a vida ideal do período probatório do Éden era “um dia” de mil anos, de maneira que o Reino Messiânico deveria alcançar o que Adão não conseguira — a medida de tempo do período probatório. Isto é corroborado pela sentença supracitada de Isaías 65, a de que o tempo de vida do Povo de Deus corresponderia à medida de tempo da Árvore da Vida, ou do Éden. A Era Messiânica deveria perdurar, por conseguinte, o período ideal pretendido para o Primeiro Paraíso. Essa tradição é assumida na Patrística através de Irineu e Justino, este desconhecendo a aplicação literal do número mil. Tudo converge, pois, para a afirmativa preconizada de que a Era Messiânica foi a Era Cristã, de Peixes, durante a qual Satanás esteve silenciado e correspondendo ao tempo probatório que deve ser completado no espírito do Segundo Adão antes da eclosão da grande batalha escatológica cósmica.
A Era Messiânica deveria perdurar o período ideal pretendido para o Primeiro Paraíso.
A cosmogonia judaica é farta de referências à ideia de que os espíritos malignos, ligados ao Caos e ao Abismo, a Beemote e Leviatã, tendo sido derrotados por YHWH no ato do ordenamento do Mundo, foram aprisionados no fundo do Mar, ou no Abismo (Oração de Manassés 3). Esse aprisionamento dos demônios no Abismo é repetido no pós-Dilúvio, porque o Dilúvio representou uma libertação das forças do Caos Primevo. Ezequiel 32:21 e 27, segundo Robert Graves, repercute um entendimento segundo o qual os Nephilim pré-diluvianos, criaturas ciclópicas ligadas ao Caos, foram aprisionados no Abismo à semelhança dos Titãs gregos — uma tradição que é compartilhada pelo apóstolo Pedro em 2 Pedro 2:4 e por Judas (Jd 6). O tempo Antigo, todavia, não se deu no aprisionamento de todos os demônios, e alguns dos príncipes demoníacos se mantiveram ativos entre os povos da Terra. O Livro dos Jubileus fala de Mastema, o príncipe dos demônios, aprisionado apenas durante o tempo da saída dos judeus para o Êxodo, para que não pudesse molestá-los, e solto logo em seguida. O Testamento de Levi, muito similarmente a Lucas 10:18–20, prevê o aprisionamento de Belial pelo Messias, desde o qual os Filhos de Deus receberão autoridade para pisar os maus espíritos. Satanás, portanto, esteve ativamente atuante até a ocasião da Elevação do Messias Jesus, desde a qual se manteve preso, ou silenciado, desautorizado de molestar e bloquear o caminho da comunidade da Aliança. É aqui que entra, em suma, Apocalipse 20:1–3:
E vi descer do céu um anjo, que tinha a chave do abismo, e uma grande cadeia na sua mão. Ele prendeu o dragão, a antiga serpente, que é o Diabo e Satanás, e amarrou-o por mil anos. E lançou-o no abismo, e ali o encerrou, e pôs selo sobre ele, para que não mais engane as nações, até que os mil anos se acabem. E depois importa que seja solto por um pouco de tempo.
Um texto análogo, o de Isaías 24:21–24, é inegável partícipe da tradição do aprisionamento dos Nephilim, transparente em Ezequiel 32. Através dessa correlação, somos remetidos ao entendimento de que a grande batalha cósmica virá da remoção dos Limites, “Efes”, diluvianos, com um retorno do espírito demoníaco e violento dos antigos “gigantes na terra” (Gn 6:4). Satanás, liberto de seu silenciamento, arregimenta, dentro do espírito do Anticristo, Magogue, Gômer, Togarma, Pérsia, Cuxe e Pute (Ez 38–39), liderados por Gogue. Todos esses são nomes de povos que, para os judeus, correspondiam aos limites do Mundo, de maneira que ali se vê declarada uma organização de todos os povos da Terra contra o Povo de Deus — se ergue a Antiga Serpente do Mar e avança sobre a comunidade da Aliança como torrentes de águas.
Satanás, liberto de seu silenciamento, arregimenta Magogue, Gômer, Togarma, Pérsia, Cuxe e Pute…
A mesma grande batalha cósmica de Ezequiel 38–39 é descrita em Apocalipse 20, que cita Gogue e Magogue explicitamente (v. 8 ), aqui representando, com consonância com a tradição judaica, o somatório e o suprassumo de todas as forças diabólicas e vis, que são contrárias ao Senhor Deus e ao Seu Povo — não há símbolo mais completo para Gogue e Magogue do que as potências caóticas do Abismo, sintetizadas em Leviatã, que é, na literatura apocalíptica, o próprio Satã. Segundo os estudos para o Apocalipse do Comentário do Uso do Antigo Testamento no Novo Testamento, de Beale e Carson, há motivos para crermos que a batalha cósmica descrita em Apocalipse 20 é a mesma que está descrita em Apocalipse 19 e em Apocalipse 16, no famoso texto sobre o Armagedom. A grande batalha cósmica, decorrente da libertação de Satanás e de todos os demônios do Abismo para cegarem o entendimento dos e orientarem os povos da Terra contra o Cristo, será a ocasião da derrota completa de todo o sistema de trevas do Anticristo, então em vigor sobre a humanidade, porque a Antiga Serpente do Mar, reunida com suas hostes em um “único lugar”, poderá ser abatida num só golpe pela Espada do Verbo de Deus, o Cristo Régio, que descerá desde entre as Nuvens de Glória.
Texto de minha autoria (como os demais deste canal) originalmente publicado em meu perfil pessoal do facebook em 8 de agosto de 2024.