Sobre a Era da Igreja como Era de Ouro e de Ferro
Incursões livres e especulativas em escatologia
A melhor definição que consegui dar ao símbolo do Milênio, tal como existente na escatologia e nos milenarismos, é a de Era. Como símbolo escatológico e comum à literatura apocalíptica, ele evidentemente possui conotações políticas, além de cosmológicas, de maneira que deve se identificar com o bestiário e o simbolismo teriomórfico aplicado pelos profetas judeus aos impérios globais, no qual há uma identificação das Eras com os Impérios em tempos tão longínquos quanto o do profeta Daniel, em cuja obra se reconhece a analgia entre as Quatro Idades (o sonho da estátua de Nabucodonsor) e as Quatro Bestas do Mar. Por essa razão, o símbolo do Milênio deve seguir a medida de tempo assumida pela astrologia persa para o fechamento do circuito das conjunções Júpiter-Saturno (o Esplendor do Céu ou a Estrela de Belém) ao redor dos Quatro Elementos zodiacais, que é de 960 anos — isto é assim, pois o Esplendor do Céu sempre está ligado a uma mudança na ordem política terrestre, especialmente na passagem de um elemento para outro, após períodos de 240 anos. Uma Era completa passará por Quatro Períodos de Vinte e Quatro décadas (como as horas de Um Dia), cada qual correspondente a um dos elementos infraestruturais da Matéria, ou do reino sublunar — quer dizer: terrestre.
Naturalmente, o símbolo do Milênio, justamente por sua correspondência com a astrologia e sua riqueza imagética, não deverá ser encarado desde um ponto de vista cronológico literal, mas como uma totalidade de tempo, ou Era, que apresente um início e um meio extensos, mais um fim abrupto e acelerado, como o são factualmente as transições entre as Eras — a degeneração do espírito de um Tempo, quando finalmente aparece à superfície, anuncia um processo adiantado de lento declínio e é vivida, então, de uma maneira explosiva, sanguinária e imoral, até a imposição de um novo Tempo, revigorado e comumente ligado à ascensão de um novo império global. Assim também com o circuito total das Idades, ou Eras, das quais cada Era apresenta éctipos: uma Idade do Ouro, que é extensa, seguida pela Prata e pelo Bronze, que são uma decrescente de glória, para culminar no Ferro, via de regra a Idade mais curta, menos nobre e mais violenta. Assim é a Cáli Iuga dos hindus, análoga ao último período sombrio do mito germânico, a ser concluído numa grande Batalha Cósmica. Em Roma, o mesmo: imaginava-se o fechamento dos Doze Meses de Séculos com um último mês, ou o Último Saeculum, análogo à Idade do Ferro, ligado ao Fogo Consumidor do Sol, a ser terminado em uma ekpyrosis universal, fulminadora do Mundo para a instalação de um novo ciclo, principado por uma Idade do Ouro, ligada ao Fogo Purificador, feita de Luz e Glória nascentes. O apóstolo Pedro (2 Pedro 3:10–13) concorda com o entendimento romano de que o Mundo será destruído e purificado pelo Fogo Celeste, uma vez que o Senhor prometeu não mais destruir a Terra com Água. Também pertence à escatologia judaica o entendimento de uma última Idade, a do Ferro, mais curta que as demais, e que o seu fim acompanhará a degradação absoluta da sua matéria, até um curto período derradeiro de mistura do Ferro com Barro, tal como divisado nos pés da Estátua de Nabucodonosor (Dn 2:31–45).
… uma vez que o Barro, por sua qualidade de matéria-prima para a geração da Vida, é mais nobre, embora mais fraco, do que o Ferro, análogo à Morte…
Pensando nesses termos, o Milênio, enquanto Era, deve compreender em si a condensação das Quatro Idades, com um princípio radiante, de governo absoluto de Cristo através da Sua Igreja, seguido de um declínio, que vai até um fechamento (eu)catastrófico. Além disso, deve estar ligado ao ciclo maior das Quatro Idades a partir de uma leitura escatológica peculiarmente judaica e cristã. Abre-se com Cristo a Era de Peixes, que é a Era Cristã, e ela deve estar ligada ao Milênio, na medida em que ali se encontra o princípio do Reino do Messias, Jesus, o Cristo — sobre isso temos um desenvolvimento teórico já publicado. É identificada pelos apóstolos e profetas cristãos, seguindo um fundo escatológico intertestamentário, com os Tempos, ou a Quarta Idade, a Idade do Ferro, a ser findada com a fulminação do Mundo. Há ali uma perspectiva de decaimento de glória contínuo, sendo o Ferro o metal menos nobre, acompanhado de uma ampliação da maldade e da violência. Paralelamente, todavia, descreve-se o Milênio como uma Idade do Ouro (Isaías 11), o que está em total concordância com o espírito da escatologia, que é o da tensão ontológica entre os extremos: está-se na Quarta Idade, de Ferro, e paralelamente já se está na antessala da Idade do Ouro, esta em um sentido eminentemente espiritual. Eis, aqui, expressa a tensão constituinte de toda a Era Cristã: a Igreja (o Reino) e o Estado (o Dragão), cada qual portando seu próprio gládio e oscilando em termos de proeminência. Também aqui está inserido o princípio do Katechon (2 Tessalonicenses 2:7). O mesmo está expresso no versículo 42 de Daniel 2, indicando que a “parte frágil” dos pés da Estátua não é necessariamente uma parte podre, uma vez que o Barro, por sua qualidade de matéria-prima para a geração da Vida, é mais nobre, embora mais fraco, do que o Ferro, análogo à Morte:
Quanto ao que viste do ferro misturado com barro de lodo, misturar-se-ão com semente humana, mas não se ligarão um ao outro, assim como o ferro não se mistura com o barro.
Nesses dias, no tempo da “mistura”, Deus erguerá um Reino que jamais será destruído. Para o entendimento deste ponto, podemos impor duas interpretações, levando em conta como funciona o profetismo judeu e entendendo que elas não são excludentes: a perspectiva do tempo final da Idade do Ferro, num acelerado processo de deterioração, chamado o Fim dos Tempos, ou o Fim da Era, antecipatório da Parusia e da instalação derradeira da Nova Jerusalém sobre a Terra, ou o ponto terminal do alcance próprio da interpretação de Daniel: o Império de Ferro receberia, no seu tempo final, a infusão de Barro, de um elemento novo e polar, que anteciparia a sua derrocada e a sua substituição pelo Reino Messiânico, isto é, pelo Milênio, na medida em que a Era Cristã é o estabelecimento de um governo que tem o gérmen da Eternidade e que jamais será destruído, superado e substituído, mas prevalecerá para sempre. Neste ponto, somos inclinados a conceber os pés da Estátua como contendo os séculos finais do Império Romano e o governo ulterior, tanto a partir da própria medida de tempo prevista para a morte de Roma, quanto pela numerologia escatológica presente nos livros de Daniel, de Ezequiel e do Apocalipse.
… os pés da Estátua como contendo os séculos finais do Império Romano e o governo ulterior…
Os pés da Estátua indicarão, então, o princípio de uma dispensação temporal na qual o Império é gradualmente substituído por um regime bipartido de Igreja e Estado, apontando para a derrocada da Roma Imperial e para toda a extensão temporal da Era Cristã. Digo-o porque não estamos falando de uma cronologia literal, uma vez que jazemos no território do simbólico — o que significa que esse rescaldo de “tempo” no fim da Estátua pode incluir todo o significado compatível com o seu símbolo (que seja a terminação da Era de Ferro ligada ao Império Romano e o início da Era Cristã, que seja a Era Cristã, que é Era de Ferro e Ouro, que seja o Fim dos Tempos ou da Era de Ferro e Ouro, como a sua terminação acelerada).
Na Visão das Quatro Bestas do Mar, descrita em Daniel 7, e no ponto da descrição do Dragão, “O quarto reino da terra” (v. 23), é apresentado o seguinte código: “por um tempo, e tempos, e a metade de um tempo” (v. 25), referente ao tempo de reinado do Décimo Primeiro Chifre e em concordância com o esquema básico das Idades: um primeiro tempo extenso, dois tempos e um curto tempo derradeiro. Segundo um entendimento convencional, “tempo” pode ser traduzido por “ano”, conforme se vê em Ezequiel 4:5–6: “Eu tenho te dado os anos de sua maldade conforme o número dos dias, trezentos e noventa dias” e “Um dia te dei por cada ano” — acrescente-se aqui Daniel 11:13. Esta conversão de anos em dias e de dias em anos pertence ao código escatológico para a compreensão das medidas apresentadas pelos profetas judeus. Seguindo este princípio, encontramos em Apocalipse 12:6 o tempo de “mil duzentos e sessenta dias” como o tempo de refúgio da Mulher e do Menino no Deserto, tempo após o qual Miguel e as hostes celestiais derrotam o Dragão, que é o mesmo descrito em Daniel 7 e em Apocalipse 12 e 17, com a evidente assimilação por João de Patmos da Quarta Besta ao Império de Roma. Essa medida de tempo coincide com os Doze Meses de Séculos de Roma, mais Sessenta Dias, de outra forma equivalentes a “dois meses”, isto é: 1260 anos.
… com a evidente assimilação por João de Patmos da Quarta Besta ao Império de Roma.
Vemos este interlúdio de 1260 anos posicionado após a ameaça do Dragão de tragar o Filho da Mulher (uma recapitulação do Protoevangelho de Gênesis 3) e antes da descida das hostes angelicais para combater à Grande Serpente. Culmina perfeitamente bem com o sentido do Milênio, ligado que está à ideia de que o Inferno e a Morte não puderam manter em seus domínios o Cristo Crucificado e Ressurreto, Vencedor do Abismo e instaurador do tempo da Igreja, durante o qual Satanás jaz mantido silenciado, para não escandalizar a Igreja e nem instigar os reis da Terra contra ela, que é o que fará assim que for liberto, passado o Milênio (Apocalipse 20:1–3, 7–10).
Se estes 1260 anos devem ser entendidos literalmente, é uma outra questão. Eu particularmente acho sugestiva a medida de tempo ligada à Era de Peixes e a transição para Aquário, efetivada em 2020 (segundo Nostradamus, ainda aguardada 2026), com o adicional da transição da Estrela de Belém de Terra para Ar, em 2080. Importa apenas, todavia e neste momento, considerar que João de Patmos certamente conhecia a previsão do tempo de vida de Roma, medido em 1200 anos, e deve ter partido desse número, acrescentando a ele uma pequena margem adicional, como já vimos ser o padrão no símbolo das Idades. No tempo do imperador Augusto, sobre quem o poeta Virgílio escreveu a famosa IV Écogla, chamada “Messiânica”, ficou convencionado que se iniciava a Era de Ouro, tendo transcorrido o Último Saeculum, ou a Era de Ferro, de uma maneira menos dramática, mas suficiente, através das sangrentas guerras civis que consumiram a Cidade. A partir de Augusto, se passou a crer na Roma Eterna, cujos limites se expandiriam até aos Confins da Terra — o “Evangelho” de Augusto, termo que os cristãos tomaram emprestado, anunciava esta Nova Era Dourada em todas as partes do Império.
… reinterpretar este início de Era de Ouro como sendo devido ao nascimento de Cristo, o Senhor dos Senhores, e não ao nascimento de Augusto.
Certamente João de Patmos também conhecia este entendimento, assim como os cristãos primitivos da igreja gentílica, e soube reinterpretar este início de Era de Ouro como sendo devido ao nascimento de Cristo, o Senhor dos Senhores, e não ao nascimento de Augusto. Tal entendimento corrobora o supracitado sobre a tensão escatológica da Era de Ferro com a concomitância da Era de Ouro. Se deverá compreender, por conseguinte, que o marco inicial da Era Cristã, ou do Milênio, foi estabelecido diretamente sobre as datas da Crucificação e da Ressurreição, quando o Inferno tentou tragar a Semente da Mulher. Motivo pelo qual os apóstolos compreenderam desde o princípio que a Volta de Cristo demoraria (2 Pedro 3 e 1 Tessalonicenses 2:2–4) — eles tinham o conhecimento de que estava inaugurada uma Era, compreendida como breve mais em termos simbólicos (Era de Ferro ou dos Pés de Ferro e Barro) do que literais, até porque junto dela se iniciava a Era de Ouro, inicialmente em gérmen e em vistas de progredir até o máximo esplendor, quando da fulminação ou purificação do Mundo.
Mas a vereda dos justos é como a luz da aurora, que vai brilhando mais e mais até ser dia perfeito. — Provérbios 4:18
E, como se vê em 2 Tessalonicenses 2, também entendiam que esta Era, ou Milênio, não terminaria até a manifestação do Anticristo, o Décimo Primeiro Chifre, através de quem Satanás, liberto, governaria “por um pouco de tempo” (Apocalipse 20:3), correspondente ao repetitivo motivo escatológico da terminação breve da Era.
Toda essa leitura nos constrange a um discernimento mais severo da escatologia cristã, lançando dúvidas sobre a doutrina segundo a qual o descrito em Apocalipse se refere a ciclos históricos recorrentes. Está patente, pois, que os cristãos primitivos alinhados à Sã Doutrina já previam o extenso hiato até a manifestação derradeira do Anticristo e de Satanás, divisando eventos últimos como dispostos especificamente no Fim da Era ou dos Tempos. Claramente isso não anula a prática judaica de sempre aplicar as imagens e a estrutura das profecias a cada um dos tempos históricos, de maneira que o esquema do Apocalipse testemunha o circuito constante de eventos característicos da Era Cristã e do horizonte escatológico, mas ele se aplica de fato a uma série de atos últimos, dos quais os anteriores são apenas tipos ou sombras. Para ser mais claro: quase tudo o que está referido profeticamente no livro do Apocalipse se dirige, n’última instância, ao que acontece no curtíssimo período entre a libertação de Satanás e a Volta de Cristo e deve ser mantido neste seu devido lugar. Até lá, que se observem os sinais, pois a Era passa por “um tempo, tempos e metade de um tempo”, o que quer dizer: o Ouro de sua glória inicial sucedido pela tensão oscilatória e tendente à decadência, até o seu término acelerado.
Texto de minha autoria (como os demais deste canal) originalmente publicado em meu perfil pessoal do facebook em 24 de setembro de 2024.