Violência Sagrada em Mateus 5
Da Igreja como Exército Santo na Batalha Final
O Sermão da Montanha, proferido nas colinas de Kurun Hattin, sudoeste do lago de Genesaré, é o discurso escatológico por excelência. Não entrarei em detalhamentos a respeito disso, uma vez que tudo fica evidente no próprio ato da leitura, sobretudo a de Mateus 5, bastando me ater a alguns versículos selecionados, que transparecem um clima, subjacente à pregação de Cristo, muito menos pacífico, no sentido de tênue e terno, do que estamos acostumados a imaginar. De fato, não poderia haver, na Galileia do Séc. I, um pronunciamento messiânico que fosse desprovido de grande carga emocional, de tensão beligerante e de euforia antinômica, retida por uma fina camada de civilidade, mas prestes a explodir ao menos estímulo.
Essa tensão é notada nos grupos aos quais o Senhor Jesus se dirigia, denunciando, primeiramente, uma atmosfera geral de severas faltas, angústias, dores e expectativas, como uma amálgama sentimental, generalizada por empatia anárquica, ou sugestão de multidão, e que sugere uma massa humilde, especialmente vulnerável às consequências das crises políticas da região, às fomes e enfermidades, à miríade de abusos, aos demônios do deserto e às inflamações messiânicas, donde sua gana e sua prontidão na busca pelo Cristo, chamados por Ele, em Mateus 11:12, de “os fortes”. O cabedal de misérias, que vai sendo mobilizado na fala de Jesus, apresenta a variedade de desgraças e desperta, de maneira especial, os ânimos de seus respectivos alvos, que são os que sofrem de cada uma delas, e sua intercalação com virtudes lhes revigora a estima. É notável como esse atiçamento dos ânimos, do apontamento das injustiças e das virtudes, sempre os desperta antes de dar-lhes seu legítimo objeto, ou canal, que é posto para além do horizonte temporal profano e dentro da perspectiva do Reino Messiânico Eterno — as vítimas de abusos injustos, sedentas por justiça, não devem esfriar seu clamor, mantendo-o aceso e à vista de seu farto saciamento no Milênio e no Paraíso, e os que se mantém puros de coração não devem desanimar e esfriar sob a pressão dos ímpios, mas aguardar a beatífica Visão de Deus no Trono. Em termos de discurso público, certamente bradado entre as colinas, sem dúvidas essa “armação” e intensificação das emoções mais profundas, sempre sucedidas por um vislumbre da Nova Jerusalém, cumpre um papel retórico, e vai numa crescente até o primeiro clímax, nos versículos 11 e 12. Parece-se mais, na realidade, com um convite à guerra, e de fato é.
É o espírito de Guerra Santa, de comissão profética, que embebe a Missão dos Setenta, de Lucas 10…
Quando, no versículo 3, Cristo fala dos “pobres de espírito”, Ele está trabalhando com um conceito comum às antigas místicas de luta espiritual, que, à vista do Eschatos, se convertem em guerra espiritual e na mobilização, não do místico solitário, mas de um verdadeiro exército santo. Essa é uma outra tradução para “os fortes” de Mateus 11:12: o Reino dos Céus é dos violentos. Uma tal violência será aquela referente ao que os islamitas chamam de Grande Guerra Santa, de envergadura cósmica, apocalíptica, diretamente contra o Império das Trevas e as forças demoníacas que aprisionam a humanidade, e transcorre no Mundo, assim como dentro do coração de cada fiel, e por isso é menos literal (como é a Pequena Guerra Santa — concreta [militar] e local) do que moral, e nesse caso a luta contra os demônios será um combate ascético e espiritual aos logismoi, as paixões interiores. É o espírito de Guerra Santa, de comissão profética, que embebe a Missão dos Setenta, de Lucas 10, pela qual se vislumbra a queda de Satanás, e que permeia o pensamento do apóstolo Paulo em Efésios, coroado no famoso capítulo 6, versículo 12.
A tradução ideal para Mateus 5:3, segundo Frederico Lourenço, é: “Bem-aventurados os mendigos pelo espírito, porque deles é o reino dos céus.” Segundo o erudito, “ptôkhós” é necessariamente “mendigo”, não “pobre”, de maneira que não se fala de uma condição geral de pobreza, em termos de classe, mas da qualidade especial de mendicância — e mais, uma mendicância por ação do Espírito, o que culminará n’algo como: “Bem-aventurados os que são levados pelo Espírito a serem mendigos.” Não há mesmo sentimentos e circunstâncias amenas aqui! Tal apelo extremado, que vai ao máximo da pobreza, que é a miséria, sobrepõe duas camadas: mobiliza o coração do materialmente pobre (Lucas 6:20), mas o espiritualiza, e conduz a imagem da pobreza ao meandro do ascetismo. Isso quer dizer que Cristo fala de uma mendicância que é de natureza espiritual, de uma disposição interior de privação do desnecessário para a aderência ao Unum Necessarium, ou à Optimam Partem, que é estar aos pés da Palavra Encarnada, tal como Maria em Lucas 10, dentro do clima escatológico dos Setenta Enviados. O que quer dizer, ao fim e ao cabo, que o “pobre pelo Espírito” está tomado por um sentimento íntimo de carência, e lateja ardente, ansiando pela fartura do ensino do Senhor. Aqui há algo da violência contra si mesmo, ou contra os membros da própria carne, que Paulo proclama em 1 Coríntios 9:27, além da violência ou da potência irascível dirigida não contra os homens, mas na direção do Reino dos Céus, lançando-se, faminto, para dentro dele.
Sentido análogo insta no versículo 5: “Bem-aventurados os mansos, porque eles herdarão a terra.” Mansidão, considerando o que já dissemos, de maneira alguma quer dizer fraqueza, ou uma gentileza baseada no medo oportunista e na falta de espírito. Por “manso”, e deve-se entender dessa maneira o termo em seu contexto, temos a presença de potência e de violência, mas resguardada, contida — a mansidão, portanto, não é passividade como languidez, mas autocontrole decidido, fundado na piedade e na capacidade virtuosa de não retribuir o mal com o mal, em vista da recompensa futura e da confiança na justiça de Deus. É, pois, atividade e força latente, raízes da suportabilidade das violências e agressões exteriores, e uma força tal, sobremaneira fundada na vontade firme, capaz de segurar-se e de sublimar numa direção construtiva. No grego, “praeis” é aplicado tanto a pessoas quanto a animais, como a cavalos — o “forte” será mesmo manso em um sentido análogo ao desses magníficos quadrúpedes, muito bem conhecidos pela submissão de sua potência ao uso do ginete.
Porque o Reino dos Céus não se erguerá com espadas e lanças, com insurreições populares contra carne e contra sangue, mas na sobrevivência firme aos perseguidores, pela qual cresce o galardão nos Céus, e no combate espiritual, que começa no combate a si mesmo. Para tal, não cabe ao nascido do Reino um amolecimento de alma, uma pacificação em termos de esvaziamento de energeia, mas uma verdadeira multiplicação dos fogos da fornalha, uma inflamação tal das iras e das virtudes que alcance a envergadura da expectativa da longínqua Parousia e que suporte os ataques do Maligno, que venham através dos homens, desde os demônios ou desde as próprias entranhas.
Os volumes desse abate cósmico serão proporcionais aos volumes da Ira Divina e aos galardões dos santos…
Essa fixação do olhar no horizonte do Fim do Éon, ou no Eschatos, é pertinente para uma tal visão das coisas. Porque esse galardão celestial que está reservado aos cristãos, e que cresce na medida em que eles são perseguidos, muito bem pode acompanhar o aumento dos níveis dos cálices da Ira de Deus, que aproximam-se do transbordamento quanto mais sangue dos mártires é derramado, e o subsequente Dia da Vingança, quando Cristo Jesus rasgar os Céus, trajado de rei guerreiro, glorioso como o Sol, com as hostes celestiais, e levantar para Si, de todos os santos, um exército de Juízo. De fato, o Dia da Vingança, e é assim que transparece no Apocalipse, contará com a participação dos filhos de Deus, exército sagrado alinhado às tropas angelicais para o morticínio dos ímpios, dos reis e dos fortes do Mundo. Os volumes desse abate cósmico, simbolizado na escatologia judaica como o abate de Leviatã, Beemote e Ziz pelo Senhor, serão proporcionais aos volumes da Ira Divina e aos galardões dos santos, e serão servidos no grande banquete nupcial do Cordeiro, quando a Noiva, a Igreja, receber o Noivo, o Cristo, retornado da Guerra. E assim, de todas as provações no Tempo da Peregrinação, os mártires serão contados entre os instrumentos do Juízo do Senhor e veículos de Violência Divina, que é de proporções cataclísmicas, e, enfim, serão postos diante da beatífica Visão de Deus no Trono, zênite de todos os prazeres e além de tudo quanto se possa pensar e sequer desejar — bem ilustrado no Banquete das carnes do Dragão.
O SENHOR dos Exércitos dará neste monte um banquete para todos os povos. Será um banquete de carnes suculentas e vinhos envelhecidos: carnes suculentas com tutanos e vinhos envelhecidos bem-clarificados. Neste monte ele acabará com o pano que cobre todos os povos e com o véu que está posto sobre todas as nações. Tragará a morte para sempre, e, assim, o Senhor DEUS enxugará as lágrimas de todos os rostos, e tirará de toda a terra o vexame do seu povo, porque o SENHOR falou. — Isaías 25:6–8
Texto de minha autoria (como os demais deste canal) originalmente publicado em meu perfil pessoal do facebook em 2 de Novembro de 2023.