O Cristianismo Primevo e as Religiões de Mistério

De como a autoconsciência cristã se nutriu do contraste com o paganismo

Natanael Pedro Castoldi
11 min readDec 29, 2024

As religiões de mistério, que proliferaram em todo o Ocidente durante a Antiguidade Tardia, disputaram diretamente com o Cristianismo primevo, ao ponto de atuarem explicitamente na formação da autoconsciência cristã.

A decadente Roma do tempo imperial, como último rebento do Éon Pagão, apresentava todos os vícios de uma civilização morrente, com o crescimento vertiginoso do hedonismo e do materialismo, e de todos os vícios que podem ser associados a isso: violência e interesse massivo nos jogos sangrentos, práticas mágicas e bruxaria, bacanais e todo o tipo de licenciosidade. Nos tempos ligeiramente anteriores ao cristianismo havia mesmo um sentimento de Fim de Mundo, com o tempo de vida de Roma, estipulado em doze séculos, chegando ao termo, aguardado com uma ekpyrosis universal — isto é: a fulminação do mundo com fogo solar. Enquanto uma larga faixa da sociedade decaía, uma outra nutria a esperança de uma renovação “cósmica”, de uma nova Era de Ouro, e a buscava em um sentido horizontal e tradicional, pela via da religião romana e do clamor por um imperador redentivo — isso foi pensado a respeito do imperador Augusto, reinante nos dias do nascimento de Cristo -, ou em um sentido vertical, eminentemente ético e pessoal, ligado às novas religiões que pululavam na Cidade, sobretudo os mistérios egípcios e os mistérios mitraicos. Quando o cristianismo chegou em Roma, mobilizou interesses populares exatamente nesse segundo sentido, dado o apelo de sua proposta salvadora e moral, assim como o potencial filosófico de suas doutrinas.

Quando eu estive em Roma em abril de 2024, vi o busto do imenso ídolo da deusa Ísis, que estivera no templo dedicado a ela. Estudando um pouco mais sobre a presença dos mistérios de Ísis em Roma, soube que o seu templo se erguia logo depois das muralhas antigas da Cidade, o que se tornou uma determinação política para todas as religiões estrangeiras, porque a aristocracia tradicional da Cidade intentou preservar a “religião romana pura”, de maneira que nenhum santuário não romano podia ser construído intramuros. Isso serve para ilustrar a dimensão de apelo que as religiões de mistério chegaram a galgar. O cristianismo, com a proposta dos cultos no interior das residências dos fiéis, especificamente no melhor cômodo das casas, conseguiu se infiltrar com excelência nos meandros romanos mais centrais, bem no eixo das Sete Colinas. A disputa com as religiões de mistério não foi pequena.

… a intenção lúcida dos cristãos primevos de superar o mitraísmo…

Um exemplo dessas disputas, que também determinaram muito da autoimagem do cristianismo romano, está no ataque de Justino Mártir aos cultos mitraicos nas cavernas, chamadas “speleum”, como se os iniciados nesses mistérios não tivessem a legitimidade de usar da caverna, o santo local do nascimento de Jesus, para seus ritos. Um outro exemplo, ainda mais emblemático, é o das esculturas cristãs nos sarcófagos, sobretudo as dos séculos II e III. Uma em específico, que está entre as mais antigas, mostra a cena do Presépio: o menino na manjedoura, o touro, o asno e os magos, com os magos trajados com o principal emblema de Mitras: o chapéu pontiagudo, chamado barrete. O conhecimento de o culto mitraico ser de origem oriental e Persa, trazido recentemente para Roma pelas legiões, pode ter ligações com a caractertização dos magos “do Oriente”, tradicionalmente alocados na Pérsia, mas sugere algo mais: a intenção lúcida dos cristãos primevos de superar o mitraísmo, pondo aos magos, iniciados em Mitras — na realidade, sacerdotes -, de joelhos diante de Cristo, reconhecendo a superioridade de Jesus e da Sua doutrina. A assimilação cristã de elementos dos mistérios mitraicos é parte desse processo de dominação, sugerindo, no seu devido contexto, não uma submissão ou derrota cristãs, mas a vitória do cristianismo por sobre o paganismo — como se tornou a tônica do cristianismo romano e como se vê fartamente na cidade de Roma, a saber: a cristianização e a consagração de todos os grandes santuários e monumentos pagãos e imperiais, transformados, via de regra, em igrejas e, no mínimo, coroados com a Cruz, como é o caso dos obeliscos e das colunas.

O que está dito sobre as esculturas cristãs nos sarcófagos é apresentado por Joseph Campbell (Isto És Tu) junto de outras observações, porque a supracitada cena do Presépio, se apresenta aos magos como sacerdotes de Mitras, pode muito bem ter acrescentado o Touro e o Asno como símbolos de um outro culto de mistério, que poderia ser desmembrado em duas correntes de mistérios: os de Osíris e os de Set. No magma religioso da Roma da Antiguidade Tardia, o reconhecimento comum dos símbolos de cada tradição religiosa de matiz iniciático era, por assim dizer, a “lei” — os pagãos atacavam ao cristianismo apontando diretamente para os seus mistérios, embora distorcendo os seus significados, como é o caso de Celso, e os cristãos empreendiam sua apologia contra os pagãos nomeando os mistérios deles, como é o caso de Justino. Não pode ser considerada ingenuidade, por conseguinte, a “coroação” dos magos com o adereço do culto mitraico, donde também não se pode ignorar facilmente a presença dos dois principais símbolos dos mistérios egípcios de Osíris e Set na mesma cena. Convém observar que, naqueles dias, o culto de Osíris e Set também e ainda era muito proeminente em Alexandria, no delta do Nilo, um dos principais centros da erudição cristã.

Nesse mesmo retrato mais antigo [o Presépio], já encontramos a ideia católica de que os mitos mais antigos são prefigurações dos novos. Esse particular arranjo daquela pequena cena não podia nos séculos II e III ter sido objeto de equívoco para ninguém no sentido de significar qualquer coisa mais.
- J. Campbell, p. 139

Complementando o estudo anterior a esse, a presença do Asno e do Touro no Presépio cristão do Séc. II-III, na medida em que ali há uma representação indireta de Set e Osíris, sugeria a tensão entre as Trevas e a Luz, porque o Asno-Set jaz ligado aos instintos primitivos e às forças genesíacas mais baixas e desordenadas, enquanto o Touro-Osíris aponta para o Espírito, para o princípio ativo que fertiliza e ordena o Caos. Mitras, representado, dá complemento à tríade e dialoga com a própria doutrina do mitraísmo, conforme descrita por M. P. Hall (The Secret Teachings of All Ages): na cosmologia persa, há uma polaridade entre Trevas e Luz, entre Ahriman e Ormuzd, e a mistura dos opostos dá a composição do Mundo — porque Ormuzd, o Criador, enquanto tudo cria nos termos das formas ideais, é sabotado por Ahriman, que é quem insemina os elementos pesados, ou a Matéria, no Mundo -, assim como dá a composição do Homem, constituído do mais elevado e do mais grosseiro, estando Mitras, enquanto divindade defensora dos homens e deus da Inteligência, na condição de mediador dos opostos. Nascido no ventre da Terra, ele é divindade solar, mas também uma representação do Fogo Interior do Mundo e da alma do Homem, e cumpre em seu próprio drama, elaborado na liturgia de seus secretos, o itinerário a ser seguido pelos iniciados: de ascensão do Terrestre ao Celeste através de uma vereda de mortificação da carne e de elevado apelo ético. É nesse sentido que Mitras, na representação do Presépio, é quem completa a tríade dos mistérios pagãos, impondo o balanço entre Set e Osíris e sugerindo a Plenitude do Tempo dos gentios, como o fechamento do Éon Pagão e, da submissão dos principados da Antiguidade ao Cristo, o início do Éon Cristão.

… sugerindo a Plenitude do Tempo dos gentios, como o fechamento do Éon Pagão…

É notório que uma das mais famosas representações de Mitras apresenta a divindade solar imolando o Grande Touro, presente no Céu sob a constelação do Touro, enquanto a superação do princípio telúrico pelo princípio solar. Noutros termos, e seguindo M. Hall, Mitras, ao abater o Touro com sua adaga, símbolo do raio solar, faz verter sobre a terra o sangue fertilizador, representativo das essências vitais sublunares, donde dá vigor a todas as coisas. A imolação do Touro por Mitras é também um ícone do Equinócio Vernal, ou da Primavera, quando o dia e a noite têm a mesma duração e quando, no mito, é nascida a divindade no horizonte, representado ritualmente por uma laje de pedra. Nesse ícone aparece também o Cão, um animal sagrado do culto mitraico e símbolo da sinceridade e da lealdade. O Touro Celestial, enquanto constelação, é opositivo da Serpente, ligada à constelação de Escorpião — a Serpente é o emblema de Ahriman. É notório que a caverna dos secretos de Mitras, “speleum”, era decorada com as constelações de Câncer e Capricórnio, consideradas, respectivamente, os portais abertos nos solstícios de verão e de inverno, o primeiro para fazer descer a multidão das almas dos novos nascidos e o segundo, pois, para fazer subir multidão das almas dos falecidos.

Quanto a Osíris e Set, além do já apresentado no estudo anterior, são dignos de nota alguns pontos. Do período da mais famosa das antigas caricaturas de Cristo em Roma, datada de algo entre o século II e o século III — crucificado e com cabeça de Asno -, é um retrato, proveniente do Egito, de Set “crucificado”. No mito, Set matou Osíris e o filho de Osíris, o Sol ou Hórus, combateu e derrotou Set, que é retratado cravejado de facas e atado a um poste. Junto de Hórus estão os seus quatro filhos — três com cabeças de animais e um com cabeça humana -, Hórus na frente de Set e atrás de Hórus, enfim, Osíris, após quem se enxerga o Touro — Set está representado com uma cabeça de Asno. Eis, pois, o Touro de Osíris e o Asno de Set. Campbell coroa essa descrição com o lembrete de que o Asno era um dos animais simbólicos de Israel, associado diretamente a YHWH e relacionado ao planeta Saturno, a Estrela de Israel, representativa de YHWH e do Poder Planetário regente do Sábado. Ademais, como demonstra C. Jung (Símbolos da Transformação), Osíris, Mitras e a Fênix, assim como Tammuz e Adônis — sobre os quais discorremos noutra ocasião [o imperador Adriano tentou suprimir, em Belém, Cristo com Adônis] — são todos o deus que morre e renasce no culto solar que dominou a Ásia Menor.

Do livro Depois de Jesus: O triunfo do cristianismo

Retornando aos mistérios mitraicos, que não se ignore a sua chegada e proliferação em Roma no Séc. I, paralelamente ao cristianismo, embora ligeiramente mais tardios. Os documentos romanos para sua liturgia são, todavia, consideravelmente posteriores ao que sabemos da boa consolidação do cristianismo na Cidade — a partir do Séc. II, com progressos até o Séc. IV. As semelhanças entre o que está escrito na Liturgia de Mitras e, por exemplo, no Apocalipse de João são surpreendentes, e é bom lembrar que o texto joanino é mais antigo, com os trechos de Apocalipse 1:12–16, 14:14 e 19:12–15 compartilhando diversos aspectos com o que é dito de Mitras em suas analogias com Hélio:

‘… verás um deus jovem, belo, com fogosos cabelos anelados, vestindo hábito branco e manto escarlate, com uma grinalda de fogo’ […] ‘Verás Deus onipotente, com semblante iluminado, jovem, com cabelos dourados, em hábito branco e grinalda dourada, pantalonas largas, segurando na mão direita a espádua dourada de um touro que é a constelação da Ursa, aquela que move e faz retroceder o céu, peregrinando de hora em hora para cima e para baixo, e então verás sair raios de seus olhos e estrelas de seu corpo.’

As representações de Mitras são igualmente sugestivas, porque a posse da espada ou adaga repercute nos mistérios cristãos, como se vê no Apocalipse. Mitras é comumente recoberto pela capa ou manto de Hélio, de cor escarlate e replicado nos rituais com as peles ensanguentadas dos animais sacrificados, e o séquito de Hélio jaz todo trajado do linho mais fino — Ap 19:12–15 -, e os deuses com cabeças de touro vestem aventais brancos. O proponente à iniciação dos mistérios mitraicos deveria subir por três “degraus” de mortificação e de purificação, recebendo no primeiro uma coroa disposta na ponta de uma espada, com a coroa simbolizando a natureza espiritual do candidato. Para o segundo degrau, o iniciando ganhava uma armadura simbólica da inteligência e da pureza, com ela descendo para a escuridão dos poços subterrâneos com a intenção de “combater” os demônios da luxúria, das paixões e da degeneração. No terceiro degrau ele recebia uma capa adornada com signos do Zodíaco e com outros símbolos astrológicos. Essa iniciação era considerada um verdadeiro batismo, como morte de um velho homem e renascimento de um novo homem, e, uma vez iniciado, o cultista era chamado de “Leão” e era marcado na testa com a cruz egípcia — Mitras era ele mesmo eventualmente representado com cabeça de Leão e com um par de asas. Uma das etapas da iniciação, acrescenta-se, era simbolizada com a passagem por uma pirâmide de sete degraus.

Não nos devem surpreender analogias evidentes do supracitado com o texto paulino de Efésios 6:10–20, no qual o apóstolo utiliza da imagética militar e legionária para simbolizar aspectos fundamentais dos mistérios cristãos, cada qual associado a um componente da armadura completa de um soldado. Como no caso das aproximações entre o Apocalipse e a Liturgia de Mitras, todavia e a partir do dito por C. Jung, não se deve conceber a relação entre o cristianismo e o mitraísmo nos termos de “plágio” ou “cópia”, parecendo muito mais duas expressões simbolicamente similares do éthos da Antiguidade Tardia. Que, porém, as duas religiões, tendo evidentemente tensionado entre si, tenham desenvolvido símbolos e meios de autoexpressão por contraste, reciclando para si mesmas, e sob o pretexto de maior legitimidade, as imagens e os usos empregados pela rival, não é de se ignorar. Ademais, as semelhanças entre as partes são muito mais estéticas do que exatamente doutrinárias, e para compreendê-lo com clareza basta ler as epístolas paulinas, principalmente Colossenses, e contrastá-las com o espírito gnóstico dos mistérios.

… o significado disso é o da superação cristã por sobre os mistérios pagãos…

O fato é que, sim, cristãos e mitraítas compartilharam importantes elementos simbólicos e litúrgicos — Hall identifica nisso uma possível coexistência relativamente pacífica nos primeiros tempos. Entre muitos elementos similares, ambos empregaram o uso de sinos e de velas em seus santuários, assim como da “água santa”, e realizaram cultos nos subterrâneos de Roma; estabeleceram o domingo como o dia sagrado — o dia do Sol — e o 25 de dezembro como a data do nascimento de Mitras e de Cristo — o solstício de inverno -, além subscreverem diversos elementos da moral e da escatologia. Os primeiros cristãos romanos, que realizavam cultos nas catacumbas, não raramente fizeram uso dos templos subterrâneos de Mitras, assimilando às igrejas elementos arquiteturais desses lugares — e não menos do que aquilo que fora absorvido na liturgia e na indumentária sacerdotal, como já antevisto no Presépio do Sarcófago. Novamente, o significado disso, desconsiderando as possíveis implicações históricas ulteriores, é o da superação cristã por sobre os mistérios pagãos, sendo esse o espírito que determinou o pathos do cristianismo romano, tal como divisado hoje nas inúmeras intervenções cristãs nas estruturas imperiais de Roma e nos inquestionáveis empréstimos cristãos de técnicas e de estilos romanos, empregados nas grandes igrejas. Afinal, os cristãos de Roma eram gentios e eram romanos.

Texto de minha autoria (como os demais deste canal) originalmente publicado em meu perfil pessoal do facebook em 29 de dezembro de 2024.

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Natanael Pedro Castoldi
Natanael Pedro Castoldi

Written by Natanael Pedro Castoldi

Psicoterapeuta com formação em teologia básica e leituras em história das religiões e simbolismo. Casado com Gabrielle Castoldi.

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