Sobre Militância Política e Esquizofrenia Paranoide
Uma leitura em Joseph Campbell
Parece haver uma correlação fenomenológica entre a esquizofrenia, o consumo de dr0g4s e o chamado antinomianismo histérico, a típica revolta contra a ordem estabelecida da juventude de nosso tempo. Segundo a exposição dos estudos de Dr. Mortimer Ostow por Joseph Campbell (Mitos Para Viver), há associações entre a revolta dos jovens — cujas atitudes, “agressivamente antissociais”, se tornaram proeminentes no comportamento “de um número significativo de adolescentes de campus e de seus orientadores acadêmicos” (p. 230) — e a esquizofrenia paranoica, direcionada contra o mundo exterior.
Confesso que essa sentença me surpreendeu, mas não me impressionou — fiquei surpreso, pois converge muitíssimo bem para as impressões que nutri durante esta última década. Toda a elaboração apresentada por Campbell me pareceu carregada de factualidade: esses jovens “de campus” (e seus orientadores) compartilham uma sensação de ameaça generalizada, emergente de todos os lugares, pois se assenta sob a abstração plenipotente do chamado “Establishment” — mesmo quando seus representantes são a própria face do Estamento Burocrático, seguem amedrontados diante de um inimigo difuso e titânico (o Sistema da cultura e da economia hegemônico, por exemplo). Por isso, Campbell é preciso ao definir esse “Establishment” como sendo a própria Civilização moderna. Embora haja algo de emulação pública e teatral de comportamento e discurso antissistema, pois estamos no campo do tribal, é substancialmente verdadeiro o medo que a maioria desses jovens afirmam sentir, de maneira que seu horror é real — ao menos dentro de suas cabeças.
… o que bombardeia ao seu redor são os símbolos hipostasiados de seus pavores internos.
Isso se alinha à esquizofrenia paranoica desde seu mecanismo: o mundo “lá fora” se transforma em um campo minado de perigos escatológicos, pois se tornou o receptáculo imediato e sem filtro dos medos internos. Nesse sentido, é virtualmente impossível que um partícipe imerso desse “locus mentis” não recaia em paranoias de matiz apocalíptico e generalizante, se sentido em uma verdadeira “Guerra Santa” universal, da qual é um “zelote’ (nos termos de Edward Edinger — Arquétipo do Apocalipse), pois o que bombardeia ao seu redor são os símbolos hipostasiados de seus pavores internos. A vida primitiva da mente trabalha esses pavores como absolutos e como totalidades, seguindo o caminho dos instintos, que são desdobrados arquetipicamente. A mente sadia não literalizará essas imagens mentais, impondo sobre elas o juízo crítico e racional necessários para que se relativizem e cumpram um papel meramente auxiliar na interpretação dos fatos externos. Quando as imagens terrificantes são literalizadas, como ocorre na paranoia, impõem-se sobre a inteireza da realidade, pois são, de raiz, absolutas e, assombrosas, transbordantes de “energeia” — dessa maneira, atuam sobre a mente como entidades exteriores, verdadeiros “daemons”, e, no regime dos pensamentos, “logismoi”. Tal reversão patológica é viabilizada pela formação de turba, da sugestão de manada, porque a psique da multidão é, por definição, altamente rudimentar e literalista.
… atuam sobre a mente como entidades exteriores, verdadeiros “daemons”…
Enquanto professor universitário, Campbell pôde dar o seu testemunho pessoal do que vira nos campi. Ele percebera como aqueles jovens estavam sendo esmagados pelo peso e pela pressão massiva de suas projeções paranoicas, e de como estavam sendo arrastados pelas cargas de afetos incontroláveis, de modo que, via de regra, eram incapazes de se comunicar com clareza — porque “todo o pensamento, para eles, está tão cheio de sentimentos para os quais não existe nome no discurso racional”. Um número crescente, segue o mitólogo, já não conseguia pronunciar uma simples frase declarativa, “interrompendo cada tentativa de formar uma frase com a palavra irrelevante ‘tipo’” (p. 230), donde a fala se diluir em sinais mudos e em silêncios prenhes de sentimentos angustiados.
A gente se sente, às vezes, ao lidar com eles, como se estivesse de fato em um asilo para lunáticos sem paredes. E a cura indicada para as mazelas sobre as quais eles estão gritando não é de maneira alguma sociológica […], mas sim psiquiátrica.
- Campbell, p. 230
Não se ignore, do acima exposto e conforme tenho alertado com recorrência no último punhado de meses, o que se nos acomete no Brasil, em termos de política massificada e de adoecimento coletivo de qualidade paranoide — tanto na ala direitista, quanto na ala esquerdista, sobretudo nas vanguardas populares. Mesmo que não se possa ignorar a verdade subjacente de muitas demandas ou palavras de ordem, o fato é que a exposição crônica ao pensamento de turba e ao discurso conspiratório é extremamente nociva para a psique individual, dilacerando a personalidade, que regride em complexidade, e as capacidades verbal e racional, assim como o juízo crítico. Se levarmos em conta o histórico da última década e meia, das oposições e radicalizações desde a penúltima gestão presidencial — não desconsidero, aqui, o “serei resistência” e o “ninguém solta a mão de ninguém”, e nem o hipócrita “salve a Amazônia” -, incluindo o tempo pandêmico e as insanidades do embate eleitoral e propagandístico da última eleição federal, continuadas no vigente governo da parte da larga margem militante que finge não ver o montante everéstico de contradições com o próprio discurso, estamos vivendo um período lastimável na “psicologia do brasileiro”, prenúncio, se algo não interromper o processo, de graves tragédias nacionais — dentre as quais, a pior de toda: a morte dos espíritos, já mortas as inteligências.
Texto de minha autoria (como os demais deste canal) originalmente publicado em meu perfil pessoal do facebook em 8 de outubro de 2024.