O Altar Hebreu e o Monte Santo
Hipótese de uma cosmologia pré-mosaica e elementos de escatologia
Dentre os entendimentos tradicionais da Visão de Jacó em Bet-El, que, como vimos, pode ter sido o cume do Monte Moriá, há um segundo o qual a Escada era o Monte Sinai e o Altar arquetípico. Não parece haver distinção, na realidade, entre o Sinai e o Altar nesta tradição (Bin Gorion, As Lendas do Povo Judeu), de maneira o Altar do Templo (Harel — “Montanha de Deus”), divisado por Jacó em proporções cósmicas, se revela como o éctipo da Montanha Sagrada, tal qual nos fizera saber Ethel Nelson (Em Busca da Montanha Sagrada), e a sua escadaria, do Pátio ao Braseiro do Altar (Ariel — “Leão de Deus”), um símbolo da subida do Monte Santo.
Os altares primitivos de YHWH, como aquele que Jacó teria encontrado em Moriá e cujas pedras de fundiram no Pilar que erguera como Pedra Fundamental do Santuário, eram constituídos de pedras brutas, não talhadas, empilhadas à maneira de uma pequena colina, desprovidos de escadaria para que o oficiante do culto os escalasse como a uma montanha (Êx 20:24–25). A tradição indica que eram feitos de doze pedras — o altar de Abraão em Moriá, no qual deitara Isaque como holocausto, teria compreendido doze pedras, o mesmo número identificado por Elias na reconstrução do altar de YHWH no Carmelo (1 Rs 18:30–31). A localização desses altares junto de Montes Santos, como Moriá, Sinai e Carmelo, é sugestiva de seu sentido ectípico de Montículo Primordial, espelhando a Montanha Sagrada no formato e como reflexo dos outeiros aos pés dos quais eram levantados, donde a subida pelos altares ser um análogo da subida da Montanha Sagrada.
… a subida pelos altares ser um análogo da subida da Montanha Sagrada.
No Sinai, o próprio Moisés construiu o Altar bem debaixo do Monte, e ergueu junto dele doze colunas correspondentes às Doze Tribos (Êx 24:9). Foram circunscritos níveis de santidade ao redor da Montanha, os mesmos que foram mantidos no Tabernáculo / Templo, à luz do conhecido no Sinai: a Congregação esteve limitada a uma certa distância do Pé do Monte, antes dos Pilares e dos pés do Altar — conservou-o no Santuário no acesso ao Pátio (Azará), onde estava o Altar; após os Pilares e o Altar, correspondentes ao Azará (o Pátio), havia uma linha, a qual também circunscrevia as bordas do Sinai, e a essa linha só podiam atravessar os sacerdotes, Aarão e Moisés, com os sacerdotes podendo chegar a um ponto da subida, Aarão a um ponto mais avançado e Moisés ao cume (Êx 19:12 e 24, 24:9). Antes da subida de Moisés no Monte Santo, o Altar e os Doze Pilares foram o receptáculo de uma cerimônia única, e ali os sacerdotes oficiaram os sacrifícios (Êx 24:4–6).
A configuração e a delimitação desses ‘espaços’ no Monte Sinai também determinou a estrutura espiritual permanente do Templo: o de Moisés era o da profecia — ou seja, equivalente à Santidade e à Santidade das Santidades no Templo; o ‘espaço’ sacerdotal era o do serviço do Templo realizado no Altar que ficava no Azará (Pátio); e o do Sinédrio era o ‘espaço’ da Torá no Templo, especificamente na Câmara das Pedras Talhadas, de onde a Lei da Torá era emitida e ensinada a todo o povo de Israel.
- Rabino Yisrael Ariel, O Templo Sagrado de Jerusalém, p. 21
A partir da subida de Moisés e da sua Visão, entendendo-se, segundo uma tradição, que ali o Senhor mostrou-lhe o Templo Celestial e fê-lo conhecer o projeto do Tabernáculo, foi organizado o acampamento da Congregação como uma réplica, ou cosmion, do arquétipo sinaítico: o nível mais santo era o do Tabernáculo, o segundo nível de santidade era o acampamento dos levitas ao redor do Tabernáculo e o terceiro nível era o do acampamento de Israel. A Tenda de Moisés ficava diretamente na frente do Tabernáculo, perfazendo o complexo Templo-Palácio, já que ali era reunida a corte de Moisés, isto é: os 70 Anciãos, e para este lugar deveriam ir os que tivessem sede da Palavra de Deus (Êx 33:8). O Tabernáculo era ele mesmo uma microescala do Cosmos: o Pátio, coroado pelo Altar, como um espaço comum para a Congregação acompanhar os ofícios sacerdotais de caráter público — um análogo do Jardim Murado do Éden, com seus Quatro Rios, e do vasto Mundo Primitivo, com seus Quatro Cantos; o Santo Lugar, após o Altar, guardador da entrada do Santuário, como o espaço no qual apenas sacerdotes poderiam circular — um análogo do espaço médio entre a Terra / Matéria (as Quatro Paredes — horizontal) e o Céu / Espírito (o Teto — vertical), de maneira que a orientação do corredor da Nave do Santo, indo do Nascente ao Poente (direção do Horebe — “Outeiro do Poente”), do Pátio ao Santíssimo, era a transição dos Mundos (a subida da Montanha); numa reta desde o Altar e passando pelo Santo, enfim, o Santíssimo, isolado pelo Véu, um marcador da linha divisória entre o terrestre e material e o celeste e espiritual — por ele passava apenas o sumo sacerdote, primogênito de Deus, transfigurado anjo (vestido de linho branco) para ingressar, uma vez ao ano, no Eterno, onde está o Trono do Senhor, guarnecido pelos querubins. Se o Pátio corresponder ao espaço do Altar e dos Pilares, o Santo Lugar estará após o cordão da borda do Sinai e o Santíssimo, pois, será o topo do Monte. Uma vez que a Montanha Sagrada, com seus níveis de santidade, é uma representação arquetípica do Cosmos, naturalmente o Tabernáculo, logo o Templo, é também um éctipo do Cosmos.
… a orientação do corredor da Nave do Santo era a transição dos Mundos (a subida da Montanha)…
A analogia entre a Montanha Sagrada e o Altar, conhecida com clareza na Visão de Jacó, ganha melhores contornos com a confecção do Altar do Tabernáculo, que é decorrente daquilo que Moisés vira no Templo Celestial. Porque o Altar do Tabernáculo era acessado por uma soberba escada de quinze metros, estendida ao longo da altura de cinco metros da Grelha, ou Ariel. O Altar do Tabernáculo era como um grande pilar, assentado que estava por sobre um pedestal. O Altar do Templo de Salomão possuía uma sugestiva forma escalonada, mais uma pirâmide do que uma torre — em ambos os casos, símbolos da Montanha Sagrada -, e conservou a altura de cinco metros. Nos dois Altares, quatro chifres (poderes ou picos) rodeavam a Grelha (Ariel), o quinto “chifre” — isto é: poder ou pico. O topo do Altar, “Leão de Deus”, tecia relações simbólicas com o Santíssimo, ambos, como visto, representativos do cume espiritual da Montanha Sagrada, que está no Céu e diante do Trono de Deus — o próprio Véu, segundo o rabino Rashi, possuía adornos figurativos de leões (“Ariel”) e de águias (os Querubins, portanto). Quando Cristo foi imolado no Monte da Caveira e Seu sacrifício subiu aos Céus através da mesma Nuvem que esteve sobre o Tabernáculo (“ananê hacavod”), imediatamente o Véu do Santíssimo se rasgou.
E era já quase a hora sexta, e houve trevas em toda a terra até à hora nona, escurecendo-se o sol; e rasgou-se ao meio o véu do templo.
E, clamando Jesus com grande voz, disse: Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito. E, havendo dito isto, expirou.
- Lucas 23:44–46Mas o monte foi mudado de seu lugar e seu cume penetrava no céu; uma nuvem envolvia o monte e o Senhor estava sentado em cima no seu trono, os pés apoiados na nuvem, conforme está descrito no Livro dos Salmos com as palavras: ‘Ele inclinou o céu e desceu, e a escuridão estava sob seus pés’.
Moisés estava com os pés sobre o monte, mas o seu corpo estava no céu, que o cercava como uma tenda. Olhou ao redor e viu o que acontecia lá em cima, e o Senhor falou com ele como um amigo, face a face.
- Gorion, p. 295
Na Visão de Jacó da Escada como a Montanha, é notória a analogia entre a Nuvem relampejante de Deus que estava no e os fogos que desciam do topo do Sinai com a imagem do Altar enquanto Monte Santo, de cume incandescente e flamejante, como se lê:
Uma escada estava sobre a terra. Era a casa de Deus, e seu cimo, que alcançava o céu, eram os sacrifícios cujo aroma chega até o alto; os anjos de Deus eram os sacerdotes, que exerciam suas funções, subiam e desciam os degraus do altar, e o Senhor estava no alto, sobre o altar como o profeta Amós o vira.
[…]
A escada era o monte Sinai, e seu cimo, que tocava o céu, era o fogo que chamejava até o alto; e os anjos de Deus eram Moisés e Arão [que puderem subir, cada um até uma parte].
- Gorion, p. 195Moisés levou o povo fora do arraial ao encontro de Deus; e puseram-se ao pé do monte. E todo o monte Sinai fumegava, porque o Senhor descera sobre ele em fogo; e a sua fumaça subiu como fumaça de uma fornalha, e todo o monte tremia grandemente.
- Êxodo 19:17–18
Desta maneira, o que se refletiu do Sinai no Altar, enquanto éctipo da Montanha Sagrada, foi o Sinai na ocasião da grande teofania do Êxodo — quando o Monte se incendiou e encheu de fumaça, como se fosse um verdadeiro vulcão. Uma vez, todavia, que o simbolismo do Montículo Primordial no Altar antecedeu a própria teofania do Sinai, de maneira que o Altar hebreu sempre fora representativo da Montanha Sagrada, o cimo flamejante dos holocaustos não imitou exatamente a teofania vulcânica sinaítica. Isso impõe uma cosmologia hebreia altamente sofisticada e primitiva, conhecedora de um simbolismo da Montanha Sagrada, replicado no Montículo, e que já conhecia os níveis de santidade como representativos da cosmologia, ou dos níveis cósmicos, e que identificava o Santíssimo com o Fogo, símbolo do Fogo Espiritual, que é Fogo Purificador, a própria Luz Una do Um Dia (do Eterno) e o Ouro Divino do Santuário / Palácio Celestial — donde o Santíssimo ter sido todo revestido de ouro. Ariel, o topo ardente do Altar (Harel), era símbolo direto do Paraíso Celeste e ostentava a linha divisória entre o material e o espiritual. O que era depositado nele como oferta de sacrifício ao Senhor ardia simultaneamente na Terra e no Céu — em corpo, na Terra; em espírito, sob a forma da fumaça aromática, no Céu, bem diante do Trono de Deus. O mesmo símbolo de Apocalipse 8:3–5, com as orações dos justos, em grande sofrimento na Terra, vistas como os sacrifícios aromáticos.
O que era depositado nele como oferta de sacrifício ao Senhor ardia simultaneamente na Terra e no Céu…
Tal entendimento nos ajuda a discernir mais profundamente o significado da experiência teofânica da Congregação no Sinai, pois o que eles viram acontecendo com a Montanha era a proporção cósmica daquilo que eles viam e entendiam acontecer simbolicamente e em microescala em todos os altares e em todos os sacrifícios autorizados de YHWH El. Sabiam, por conseguinte, que Aquele que se manifestava diante de seus olhos era inequivocamente o Deus adorado pelos Patriarcas e transmitido a eles, no Egito, desde José.
Acrescenta-se a essa cosmologia primeva vinculada ao Altar, o Montículo Primordial, a possibilidade antevista de ele ser feito com doze pedras mesmo no tempo dos Patriarcas, desde o que somos impelidos à identificação de um sentido mais universal ao Doze do que aquele das Doze Tribos, prevalente apenas após Jacó. Como preconizamos em outro estudo, o Doze deverá ter uma relação com o Zodíaco, o símbolo do Ano Cósmico e da totalidade do Tempo, identificado com as constelações teriomórficas, que são em número de doze e que circulam todo o céu noturno — daí “Zodiakos Kyklos”, o Círculo dos Animais. Odon Vallet (Jesus e Buda) verá o que chama de “zoologia sagrada” nas bases do Trono de Deus, o Vivo (To Zôon), tal como descrito em Apocalipse 4 a respeito dos Seres Viventes, aos quais o profeta Ezequiel igualmente vira (Ez 1), de onde temos base para imaginar o Trono do Senhor, no Arawot, assentado acima das Estrelas e fora do Tempo, na Eternidade. O Teto do Santuário simbolizando o Céu, dará o caminho estelar que aponta para o Eterno, depois do Véu — de fato, é dito de Enoque que ele tivera uma Visão do Teto do Templo como o domo celeste, repleto de estrelas que perfaziam uma senda, um caminho, e o profeta Isaías vira o Teto do Templo se abrindo diretamente para o Arawot e para o Trono de Deus, d’além das Estrelas (Is 6). O Altar, feito de doze pedras, por conseguinte, deve ter refletido a antiquíssima ideia do Santuário / Palácio Celeste alocado no Tempo Forte, fora da Terra, no cume fumegante da Montanha Sagrada, tipificado pela Grelha (Ariel).
… tal como as doze pedras do Altar de Abraão se fundiram em uma só sob Jacó, constituímos um só Corpo em Jesus.
Essa perspectiva é robustecida pela descrição da Nova Jerusalém em Apocalipse 21, porque a Nova Jerusalém, um cubo perfeito, é o Santíssimo em dimensões cósmicas, e tem suas paredes, isto é: seus lados, assentadas sobre Doze Fundamentos, ou Doze Pedras (jaspe, safira, calcedônia, esmeralda, sardônica, sárdio, crisólito, berilo, topázio, crisópraso, jacinto e ametista), cada um regendo uma das Doze Portas, feitas de pérola. Os nomes dos Doze Apóstolos estão escritos nos Doze Fundamentos, cada qual no seu próprio. Sobre os umbrais das Portas estão escritos, um para cada uma, os nomes das Doze Tribos, estes nomes associados, portanto, aos Doze Apóstolos (o nome de Pedro, tradicionalmente vinculado à Primeira Pedra, feita de jaspe [Mt 16:18], governa a Primeira Porta), os precursores da Nova Humanidade que vem de Cristo Jesus, as Primícias. O Novo Homem é feito conforme a perfeita Imagem e Semelhança de Deus, o Cristo Glorificado (Cl 2:9–10), que é a Rocha e a Pedra Angular do Santuário Espiritual (1 Pe 2:5–6), e tal como as doze pedras do Altar de Abraão se fundiram em uma só sob Jacó (Gn 28:11 e 18), porque as Doze Tribos seriam Um Povo, constituímos, mesmo sendo muitos, um só Corpo em Jesus (Rm 12:5).
Texto de minha autoria (como os demais deste canal) originalmente publicado em meu perfil pessoal do facebook em 02 de setembro de 2024.